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domingo, 4 de novembro de 2018

XIII Simpósio de Psicanálise da UERJ


Objetivo

Vinte anos de luta pela explicitação da inserção da Psicanálise na UERJ não foram em vão: ora os festejamos tanto com o sucesso do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise – hoje com Mestrado e Doutorado –, quanto com a criação, neste ano de 2018, do Departamento de Psicanálise do Instituto de Psicologia da UERJ, no qual, a partir de agora, o Programa está inserido. Afirmamos nossa diferença quando da criação do Programa em cuja base esteve o Departamento de Psicanálise criado por Jacques Lacan em Vincennes, para o que ele próprio contou com o apoio político de eminências da intelectualidade francesa como Claude Lévi-Strauss e Michel Foucault. Durante os últimos vinte anos, a cada nova turma, criamos e recriamos o Programa, replicando o desejo que Freud expressou quando, em Budapeste, dizia que o ensino da psicanálise na Universidade é altamente alvissareiro, e o desejo de Lacan que, em outubro de 1978, vinte anos antes da criação do nosso Programa e hoje há quarenta, como Diretor Científico do Departamento de Psicanálise de Vincennes proclamava: “Há quatro discursos. Cada um se arvora como verdade. Somente o discurso analítico faz exceção. Do que se concluiria que seria melhor que ele dominasse mas, justamente, esse discurso exclui a dominação, dito de outro modo, ele não ensina nada. Ele nada tem de universal, por isso não é material de ensino. Como ensinar o que não se ensina? É nisso que Freud caminhou [...]”. A antipatia dos discursos, o universitário e o analítico, poderá ser superada? Lacan responde que não, que há uma antipatia estrutural entre esses dois discursos, mas que é isso justamente o que o trabalho da Psicanálise na Universidade explora, de modo que “Ao se confrontar com seu impossível, o ensino se renova, se constata”. Eis já um paradoxo que a psicanálise comporta. No momento histórico que vivemos, no Brasil, mas também no mundo, os paradoxos se multiplicam e confrontam o psicanalista com a política, ou seja, confrontam a regra fundamental da psicanálise da abstinência do psicanalista com a necessária posição ética que exige do psicanalista se posicionar num “isso não” ou “isso nunca mais”. Que outras posições a ele se demandam? Articulando política, teoria psicanalítica e clínica, as pesquisas que realizamos nos últimos vinte anos nos permitem lançar este Simpósio comemorativo, convocando colegas da comunidade acadêmica, da psicanálise e suas conexões, e trabalhadores na saúde, na educação e na justiça para nos fazerem chegar, até o dia 10 de outubro, propostas de trabalho sobre os seguintes temas:
¨ O desejo do analista é o desejo de obter a diferença pura
¨ A política da falta-a-ser, hoje
¨ Desejo do analista na pólis e na clínica
¨ Política da psicanálise e a afirmação da diferença
¨ A sexualidade é diversa
¨ O sexo entre desejo e gozo
¨ Psicologia das massas, ainda
¨ O singular e o coletivo
¨ Identidades e redes
¨ Ser e sujeito na sexuação


Coordenação
Professora Sonia Alberti e Professor Marco Antonio Coutinho Jorge


CONVIDADOS INTERNACIONAIS:
  • Professor Sidi ASKOFARÉ, Universidade de Toulouse, França;
  • Professor Alessandro BILBAO, Universidade Andrés Bello, Chile;
  • Professor Julio HOYOS, Universidade de Antioquia, Colômbia.

sábado, 20 de outubro de 2018

Artigo - Virgínia Bicudo: uma história da psicanálise brasileira.

Virgínia Bicudo: uma história da psicanálise brasileira*

*Artigo publicado no Jornal de Psicanálise, vol.44, n. 80, São Paulo, jun. 2011. Disponível no link: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352011000100006&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt


Por Maria Helena Indig Teperman2 ; Sonia Knopf3
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP



RESUMO
Trazemos, neste texto biográfico sobre Virgínia Leone Bicudo, importantes aspectos e dados de sua vida, alguns ainda não divulgados, baseando-nos no material mantido pela Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. O relato parte de um levantamento de suas raízes familiares, fala do ambiente em que ela vivia durante a infância, aborda a fase de sua formação e de seus estudos, tanto como socióloga quanto como psicanalista, trajeto que prevaleceu em um segundo momento; acompanha o significativo papel por ela desempenhado na constituição e no desenvolvimento da psicanálise no Brasil.
Palavras-chave: Psicanálise, Sociologia, Virgínia Bicudo, Durval Marcondes, Preconceito racial.



Em 2010, a SBPSP comemorou o centenário de nascimento de Virgínia Leone Bicudo, importante parceira de Durval Marcondes na construção da psicanálise em São Paulo.
Nascida em 21 de novembro de 1910, neta de escravos e imigrantes italianos, ao longo de seus 93 anos de vida Virgínia fará um percurso marcado por inquieta busca de compreensão da condição humana.
Em dezembro de 1897 desembarcam do navio Equità, no porto de Santos, vindos de Catania, na Sicília, seus avós maternos Pietro Paolo Leone e Agrippina Palermo Leone, já então com quatro filhos, sendo Giovanna a mais velha. São encaminhados para uma fazenda de café na região de Campinas, a Fazenda Mato de Dentro do Jaguari, de Bento Augusto de Almeida Bicudo.
Na mesma fazenda vive Theophilo Julio, filho da escrava alforriada Virgínia Julio, cuja história se perdeu, e de pai desconhecido. Seu padrinho e patrão, Bento Bicudo, percebe desde cedo a notável inteligência do garoto Theophilo e o recebe para morar no interior da casa − um empregado de dentro, como se dizia daqueles cujas atividades se davam na casa dos patrões −, favorecendo sua educação até a idade adulta. Mais tarde, Theophilo passa usar o nome Bicudo, talvez devido ao costume da época, pós-abolição, quando os ex-escravos, na falta de sobrenome de família, adotavam o de seus senhores.
Quando bem jovem, Giovanna Leone, a filha mais velha do casal imigrante, passa a trabalhar como ama da filha dos fazendeiros. É nessa circunstância que Giovanna e Theophilo se conhecem, apaixonam-se e vêm a se casar mais tarde, mudando-se para São Paulo, inicialmente no bairro de Santa Ifigênia e depois na casa número 14 da Vila Economizadora, na Luz.4
Pai de família atento e dedicado, Theophilo foi funcionário público federal dos Correios e Telégrafos durante toda a sua vida e, para completar a renda familiar, dava aulas particulares em sua casa à noite. Havia sonhado com uma carreira na medicina, mas suas tentativas foram frustradas pela recusa em recebê-lo, pois era negro.
Os filhos vão chegando e em poucos anos já são seis. A segunda filha do casal, nomeada Virgínia como a avó paterna, desde pequena dá sinais de viva inteligência e profundo interesse pelo conhecimento, traços que conservará por toda a vida estudantil e profissional.
Virgínia Leone Bicudo inicia sua vida escolar na Escola Normal do Braz, concluindo os cursos primário e médio em novembro de 1921. Irá cursar depois a Escola Normal da Capital, futura escola Caetano de Campos. É dessa instituição seu diploma de habilitação para o magistério público no estado de São Paulo, datado de dezembro de 1930. Trabalha por muitos anos em vários órgãos municipais e estaduais, sempre na área da educação.
O diretor da Escola de Higiene e Saúde Pública do Estado do Instituto de Higiene de São Paulo, o médico sanitarista Prof. Dr. Geraldo Horácio de Paula Souza, funda então o Curso de Educadores Sanitários, que tem como objetivo ministrar cursos de conhecimentos teóricos e práticos de higiene aos professores para que eles os introduzissem, a partir de uma visão essencialmente preventiva − e decorrente do movimento higienista mundial −, em Centros de Saúde e nas escolas. Com isso, abria-se um novo e ampliado espaço de trabalho para as mulheres, que constituíam maioria quase absoluta dos professores primários na sociedade paulista da época. Em sua busca constante de conhecimento e ampliação de horizontes, vemos Virgínia, em dezembro de 1932, concluir o Curso de Educadores Sanitários da Escola de Higiene e Saúde Pública do Estado de São Paulo, iniciado em março de 1931. É então comissionada junto à Secção de Higiene Mental Escolar do Serviço de Saúde Escolar do Departamento de Educação, cargo que mantém até 1938, quando então é nomeada Educadora Sanitária do mesmo serviço.
Mas uma inquietação permanente, uma busca de alguma coisa a mais, que a acompanhou vida afora, vai levá-la em outra direção. É ela mesma quem relata, muitos anos mais tarde, em depoimento ao Projeto Memória: "Eu tinha sofrimento, tinha dor e queria saber o que causava tanto sofrimento. Eu colocava que eram condições exteriores. Então pensei que, estudando Sociologia, iria me esclarecer…".
A Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, instituição complementar da Universidade de São Paulo, foi criada em 1933 e teve como vocação contribuir de maneira decisiva para a imagem de um Brasil moderno. Foi para Virgínia de grande interesse a proposta oferecida por essa escola de estudar a realidade brasileira em seu processo de modernização. Em 1936, ela começa o primeiro ano do curso, fazendo parte da segunda turma.
Durval Marcondes, homem de grandes interesses intelectuais, também se volta para a possibilidade de estudar sociologia e, já médico, é aluno do curso; ao mesmo tempo, é professor de Psicanálise e Higiene Mental na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. Assim se dá o encontro de Durval e Virgínia, também nesse período, encontro esse que irá se desenvolver no trabalho comum com a psicanálise.
Entre os oito bacharéis em Ciências Políticas e Sociais de 1938, Virgínia é a única mulher, revelando desde então essa face pioneira, que continuará se manifestando ao longo dos próximos muitos anos.
É de autoria de Virgínia a primeira dissertação de mestrado sobre a questão racial no Brasil – mais uma demonstração do seu pioneirismo. Aprofundando sua formação, faz o curso para obter o grau de mestre na mesma escola onde se graduara e onde, nessa época, é professora assistente de Psicanálise e Higiene Mental. Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo é o nome do texto apresentado em 1945 por ela à divisão de pós-graduação da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo.
Seu orientador, Donald Pierson,5 sociólogo americano doutorado pela Universidade de Chicago, é professor da mesma escola até 1959. Autor de importantes pesquisas realizadas no Brasil na área de Sociologia Urbana, influenciou toda uma geração de sociólogos e antropólogos. Em 1944 ele é o orientador que fornece cuidadosas observações a Virgínia quando esta escreve sua dissertação, a ser apresentada no ano seguinte.
Em 1965 Pierson, já de volta aos Estados Unidos, é quem pedirá a ela um comentário crítico sobre o relançamento que fará do livro Negroes in Brazil: a study of race contact at Bahia:
Venho por meio desta, Virgínia, pedir a sua gentil colaboração, transmitindo a mim qualquer comentário adverso (criticism) sobre este livro, ou seja, o do meu estudo de relações raciais na Bahia, que, por acaso, tenha ouvido, ou tenha lido, e que acha não tenha chegado à minha atenção. Será um grande favor (o qual reconhecerei com prazer) desde que me ajudará a pensar mais sobre o estudo em apreço e, caso ache necessário, modificar certas generalizações anteriores, ou indicar onde há mal-entendidos sobre o que escrevi ou tentei fazer, ou onde, na minha opinião, precisamos de mais pesquisas. Não deve ter medo de me magoar. Como sabe, sou estudioso mais interessado na verdade do que em elogios. Para esta razão, os seus próprios comentários serão muito bem recebidos. Peço-lhe a fineza de me escrever logo, contudo, desde que há certa pressa nisso. Ficar-lhe-ei grato, igualmente, se puder me indicar se está corretamente citada ou não aqui sua tese de mestre: Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo.6
Como socióloga, além da dissertação de mestrado citada, Virgínia fez uma cuidadosa pesquisa sobre as atitudes dos alunos dos grupos escolares da capital em relação à cor de seus colegas, publicada no livro Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo em 1955. Trata-se dos resultados de uma pesquisa patrocinada pela Unesco, em parceria com a Editora Anhembi, dirigida por Roger Bastide,7 e com a colaboração de Florestan Fernandes.8 O índice do livro (Figura 1) evidencia a importância dos participantes e é um bom indicador do prestígio desfrutado por ela junto a seus pares.



O fato de a questão racial ser tão predominante no trabalho sociológico de Virgínia sugere que, além do interesse intelectual despertado pelo tema nos cientistas sociais de sua geração, além da influência do celebrado pesquisador americano sobre a jovem aluna, poderia haver outro determinante extremamente poderoso nessa escolha: sua experiência pessoal com o preconceito de cor. Virgínia voltará a abordá-la em momentos diferentes de sua vida, referindo-se a ela sempre como uma grande experiência de dor.
Em carta a Francesca Bion (Figura 2), em outubro de 1975, quando já era analista de importância reconhecida dentro e fora do país, Virgínia está diante da questão do preconceito racial como fator intimidatório e limitante.


Em entrevista dada por Virgínia a Anna Verônica Mautner e Luiz Meyer, em outubro de 1983, fala do bullying que sofreu quando criança e que a fez, inicialmente, recolher-se no ambiente familiar procurando se proteger, mas que ela passou a encarar como um desafio, algo que precisava, a qualquer preço, superar. Encontramos nessa entrevista o seguinte relato:
Eu fui criada fechada em casa, quando saí foi para ir à escola e foi quando, pela primeira vez, na escola, a criançada começou: negrinha, negrinha. Quando eu estava em casa, eu nunca tinha ouvido. Então eu levei um susto. Saí de casa para a rua e a criançada que era colega de escola, tal, só batia palmas com: negrinha, negrinha, negrinha. Eu me fechava em casa, voltava para dentro, um susto, né? Ter nota boa… ser ótima aluna e ter nota boa é uma proteção para o negativo: negrinha é negativo, nota boa é positivo. Ser negrinha com nota boa…
E ainda, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo: "O que me levou para a psicanálise foi o sofrimento que eu queria aliviar… Desde criança eu sentia preconceito de cor e procurei o curso de Sociologia para me proteger do preconceito".
Ela havia encontrado outro meio de conhecimento, nascido do seu interesse pela psicanálise. Participa de um pequeno grupo de pessoas voltado para o estudo das ideias psicanalíticas e formado em torno de Durval Marcondes. Em 1936 este grupo, convencido da necessidade de haver no país um analista didata, consegue, com a ajuda de Ernest Jones, trazer para São Paulo a Dra. Adelheid Koch, psicanalista alemã credenciada pela IPA como didata, que poderá iniciar aqui uma real formação analítica.
Virgínia conta: "Eu fui a primeira pessoa a deitar no divã da Dra. Koch. E ela com seu chapéu preto de abas largas era muito elegante, uma jovem e linda mulher".
Daí em diante, desenvolverá paralelamente, por alguns anos, as carreiras de socióloga e de psicanalista; depois, abraçará integralmente a psicanálise. Com Durval Marcondes, Adelheid Koch, Flávio Dias, Darcy de Mendonça Uchoa e Frank Philips integra o Grupo Psicanalítico de São Paulo, embrião do que virá a ser, dentro de alguns anos, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
Na noite de 5 de junho de 1944, às 21h30, esse grupo encontra-se reunido no número 42 da rua Siqueira Campos, residência de Durval Marcondes, para ouvir, por meio da leitura de uma carta de Ernest Jones, o comunicado de seu reconhecimento oficial por parte da IPA, da qual Jones é então o presidente.
Nessa mesma noite, elege-se uma diretoria assim composta:
Presidente – Durval Marcondes
Comissão de Ensino – Durval Marcondes e Adelheid Koch
Secretário – Frank Philips
Tesoureiro – Virgínia Leone Bicudo.
Assim, no momento do reconhecimento oficial do Grupo Psicanalítico de São Paulo – que irá gerar a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo – e da constituição da primeira diretoria, Virgínia é escolhida como tesoureira, a primeira de todas as funções exercidas por ela na vida societária: foi secretária, tesoureira, supervisora, analista didata, professora e diretora do Instituto Durval Marcondes em várias gestões.
No ano seguinte, uma antiga colega sua no Instituto de Higiene, Lygia Alcântara do Amaral, junta-se ao grupo. Passa a existir uma dupla muito unida, que assim permanecerá enquanto ambas viverem. São duas mulheres de personalidades e origens muito diversas, que se colocam no mundo de maneira diferente: enquanto para Virgínia a vida é uma batalha e ela sente a necessidade de se impor e se fazer respeitar, Lygia parece ver o mundo e as pessoas de maneira mais plácida, menos aguerrida, provavelmente por ter mais autoconfiança.
É sintomática a diferença de relatos das duas sobre a mesma experiência, em episódio ocorrido no Congresso de Saúde Mental de 1954. Agredidas verbalmente por um grupo de psiquiatras opositores da psicanálise, e acusadas de exercício ilegal da medicina e charlatanismo, chegam a ser ameaçadas de prisão. Cada uma reage ao seu modo. Para Virgínia, o fato foi de uma violência inominável: "… foi horrível … eu quis morrer …". Para Lygia, aquele episódio desagradável não chegou a causar problemas: "… quando cheguei em casa, meu marido quis saber como havia sido o Congresso e eu lhe respondi que tinha ficado sabendo que eu era uma charlatã!".
Essa dupla será fundamental na construção da psicanálise no Brasil.
Unindo-se ao crescente interesse na divulgação de atividades das instituições científicas por intermédio dos meios de comunicação, e já com conhecimentos teóricos e clínicos ampliados e se consolidando, Virgínia, que tem uma grande facilidade de se expressar e comunicar com paixão o que pensa e sabe, dedica-se a divulgar a psicanálise e também se preocupa em transmitir conhecimentos básicos que possam auxiliar pais e educadores na compreensão das necessidades emocionais da criança em seu desenvolvimento. Seu programa Nosso Mundo Mental, na Rádio Excelsior, é antológico: na técnica de radioteatro, monta episódios com temas do cotidiano das famílias, que ficam assim conhecendo conceitos como inconsciente, agressividade, inveja, ciúme, culpa, fantasia, amor, ódio, de maneira compreensível para elas, e recebem noções sobre como lidar com a dinâmica desses fatores. Ela é, então, uma grande comunicadora, precursora na utilização de recursos da mídia. Para o inovador programa de rádio, tem o apoio irrestrito e corajoso de José Nabantino Ramos, na época dono da Rádio Excelsior. Da mesma forma, ele a apoia na publicação dos textos no jornal Folha da Manhã. Em 1955 eles são reunidos em livro, Nosso mundo mental.
Dessa época é grande a quantidade de matérias e textos de Virgínia Bicudo e sobre ela. Dá cursos, palestras, entrevistas, aparecendo frequentemente como notícia com o intuito de apresentar e divulgar a psicanálise no Brasil. Utiliza-se, então, das ferramentas mais importantes daquele momento: o rádio, os jornais e as revistas.
Fiel à sua necessidade de ampliação de horizontes e ao desejo de dar continuidade a seu desenvolvimento, somados à imbatível determinação, em 1954 Virgínia escreve a Winnicott apresentando-se como analista didata e consultando-o sobre a chance que teria de aprimorar sua formação nos cursos fornecidos pela Socidade Britânica. Também visando inserir-se em cursos, entra em contato com Paula Heimann, no Institute of Psycho-Analysis, e com Esther Bick, na Tavistock Clinic.
Em setembro de 1955 vai estudar em Londres. Além dos cursos na Tavistock Clinic e da formação na British Society, Virgínia tem contato com os analistas mais significativos da época: Melanie Klein, com novas e surpreendentes formulações psicanalíticas, Ernest Jones, Elliot Jaques, Clifford Scott, Michael Balint, Donald Winnicott, Money-Kyrle, Hanna Segal, Emilio Rodrigué, Anna Freud, Rosenfeld, Betty Joseph, Wilfred Bion, Paula Heimann e Esther Bick.
Mesmo durante o seu período londrino, não diminui a sua disposição de divulgar a psicanálise: transmite para o Brasil, pelas emissoras de ondas curtas da BBC, algumas palestras; no programa No Mundo das Ciências, por exemplo, fala sobre uma entrevista que fez com John Bowlby, na época diretor do Departamento de Crianças da Tavistock Clinic.
Outra razão para a mudança é dada pela própria Virgínia em uma entrevista, da qual não se tem o registro de data: aponta como um dos motivos de sua ida para a Inglaterra certo esgotamento, certa saturação com o trabalho que estava realizando no Brasil naquele momento.
Há, ainda, o fator da mágoa que nela havia ficado pelo episódio da acusação de charlatanismo, tão pesado para ela e tão pouco significativo para a amiga Lygia Amaral.
Esses fatores, possivelmente acrescidos de outros que desconhecemos, fazem com que Virgínia se decida corajosamente a rumar para a Europa e absorver o máximo possível da efervescência do conhecimento psicanalítico que existia em Londres e toda a atmosfera cultural do momento. Lá, muito a atraiu também o contato com alguns nomes de vanguarda nas artes, que tinham vínculos com o movimento psicanalítico – James e Alix Strachey, que haviam sido analisados por Freud e que serão os tradutores da obra dele para o inglês, a Standard edition; Alix, também paciente de Karl Abraham, convivera intimamente com Melanie Klein em Berlim; Leonard e Virgínia Woolf, proprietários da Hogarth Press, que publicou a Standard Edition e trabalhos de Wilfred Bion.
Virgínia Bicudo é bem recebida por Melanie Klein, a quem admira intensamente. Ao lado do bom contato profissional, convive com ela socialmente e é convidada por Mrs. Klein para o chá em sua casa. Em 1958 escreve a Durval Marcondes:
Estou seguindo um seminário particular de Mrs. Klein e cada vez mais admiro a personalidade dela; é simpática e profundamente honesta, inteligente e realmente interessada na psicanálise. Ela tem outro livro no prelo! O fato é que o sucesso de Mrs. Klein tem feito mal a muitos analistas menos dotados que ela…
Vemos como interessante a ser citado a visão que outra Virgínia, a Woolf, deixa em seu Diário sobre a mesma Melanie Klein:
uma mulher com personalidade e força … não uma astúcia … uma sutileza submersa; algo que age ocultamente. Uma tração, uma torsedura como uma ressaca: ameaçadora. Uma mulher de cabelos grisalhos, expansiva, com grandes olhos brilhantes e imaginativos. (Woolf, 1979)
Quando chega a Londres, Virgínia Bicudo encontra ainda presente repercussões das grandes controvérsias dos anos 1940, e uma Melanie Klein que, ainda vigorosa, irá romper com Paula Heimann, liderar um grupo de importantes psicanalistas, organizar seu trust e publicar Inveja e gratidão. Mrs. Klein pode ainda nesse período acompanhar o crescimento de Bion, seu ex-paciente, no panorama psicanalítico londrino.
É um período difícil para ela, que chega a Londres com um inglês ainda pouco fluente e com escassez de recursos para se manter em uma cidade muito cara na época. Havia tentado obter uma bolsa de estudos, mas acaba indo apenas com seu salário de funcionária pública acrescido, por um tempo, dos pequenos vencimentos de professora da Escola de Sociologia e Política. Não consegue a efetivação de uma das bolsas patrocinadas pelo Governo do Estado de São Paulo, mas obtém da Associação Brasileira de Assistência, através do embaixador do Brasil em Londres, Assis Chateaubriand, a quantia de 2 mil dólares, na época uma quantia significativa, a ser dividida com os dois outros estudantes brasileiros que faziam os cursos do Instituto de Psicanálise de Londres. No final de cada ano há a dúvida sobre se consegue ou não a renovação de sua licença com vencimentos, que felizmente sempre acaba obtendo. Ajudas eventuais, que permitem que ela prossiga os estudos na Inglaterra e se mantenha em contato com as personalidades do mundo psicanalítico. Virgínia é uma batalhadora, essas dificuldades econômicas e de comunicação no inglês não a fariam desistir ou esmorecer.
Bion é quem recebe Virgínia calorosamente no London Institute of Psycho-Analysis, por meio de uma carta em que se diz "very glad to see you at the seminars as you suggest". Os dois se aproximam e mantêm forte amizade até a morte de Bion, amizade essa que se revela na correspondência que mantiveram durante tantos anos. Virgínia usa de sua influência para trazê-lo ao Brasil por várias vezes, hospeda-o e promove suas conferências e supervisões em São Paulo e em Brasília. Bion deixa uma forte marca na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
Também é decisiva para trazer de volta Frank Philips ao Brasil, segundo ele próprio. Em Londres, Virgínia havia retomado sua análise com ele, além de ser supervisionada por Rosenfeld.
Mais segura, e munida de uma consistente formação na área da psicanálise, Virgínia retorna ao Brasil em fins de 1959. Em 23 de março de 1960 participa de reunião clínica coordenada pela Dra. Koch, então presidente da SBPSB, apresentando seu trabalho Inveja e fetichismo.9 Volta para participar de todas as decisões importantes, a consolidação societária, enfim, o desenho da Sociedade Brasileira de Psicanálise.
Retoma sua atividade clínica iniciada em 1944, após cinco anos de análise didática. Passa a trabalhar em sua própria casa e, nos seus últimos trinta anos de vida, reside e trabalha em um grande apartamento da Avenida Nove de Julho, em edifício projetado pelo importante arquiteto e urbanista Rino Levi10, um dos participantes da criação do Instituto de Arquitetos do Brasil e do Museu de Arte Moderna de São Paulo.
A partir de 1955, Virgínia havia se tornado analista didata e supervisora, função na qual marcará profundamente, de modo direto, pelo menos duas gerações de profissionais; de modo indireto, suas marcas continuam a ser transmitidas por intermédio dos psicanalistas que ela analisou, formou ou supervisionou, que por sua vez analisam, formam ou supervisionam novos membros da SBPSB. Sua influência é também marcante no âmbito da América Latina, tendo se tornado correspondente assídua de vários colegas da região.
O espírito pioneiro se manifesta novamente após dez anos de atividade em São Paulo. Virgínia embarca no projeto de Brasília e passa a dividir-se por doze anos entre as duas cidades, trabalhando em São Paulo e, paralelamente, lecionando na Universidade Nacional de Brasília onde, com outros colegas paulistas, constitui a sede de Brasília do Instituto de Psicanálise da SBPSB, que irá gerar mais tarde a Sociedade de Psicanálise de Brasília. Nos anos seguintes permanece somente em Brasília, consolidando a entidade e formando novos analistas.
Mesmo tendo voltado a São Paulo no início dos anos 1980, continua mantendo parte de seu trabalho na Capital Federal, onde costuma permanecer cerca de uma semana por mês. Despede-se de Brasília apenas em 1993, satisfeita com o trabalho realizado: "Despeço-me feliz e agradecida, vendo-os emancipados para o desempenho de um trabalho que alcança limites além do espaço geográfico".
Só vai se despedir do trabalho clínico em São Paulo no ano 2000. Morre em 2003, pouco antes de completar 93 anos de idade.
Uma mensagem que deixa à família (Figura 3) é bastante ilustrativa de sua atitude destemida e lúcida, não só diante da vida, como também da morte:11



Referências
Bastide, R. & Fernandes, F. (Orgs.). (1955). Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo. São Paulo: Anhembi.
Bicudo, V. L. (1956). Nosso mundo mental. São Paulo: Instituição Brasileira de Difusão Cultural.
Bicudo, V. L. (1955). Atitudes dos alunos dos grupos escolares em relação com a cor dos seus colegas. In R. Bastide & F. Fernandes (Orgs.), Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo (pp. 227-310). São Paulo: Anhembi.
Bicudo, V. L. (1947). Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Revista Sociologia, 9(3), 195-219.
Campos, C. (2002). São Paulo pela lente da higiene: as propostas de Geraldo Horácio de Paula Souza para a cidade (1925-1945). São Carlos: Rima.
Woolf, V. (1985). The diary of Virgínia Woolf (1936-1941) (Vol. 5). New York: Barnes & Noble.






Maria Helena Indig Teperman

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E-mail: soniak@weba.com


Recebido em: 23/05/2011


Aceito em: 1/06/2011




1 O Fundo Virgínia Leone Bicudo, da Divisão de Documentos e Pesquisa da História da Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise (DDPHP-SBP), guarda documentos de várias sortes: correspondência, convites, fotografias, manuscritos, assim como entrevistas, notícias, reportagens e artigos; ao mesmo tempo que nos restitui aspectos de uma vida notável, traz-nos informações importantes sobre a história da psicanálise no Brasil.


2 Psicanalista, membro filiado ao Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise da SBPSP.

3 Psicanalista, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise da SBPSP.

4 Vila Economizadora: conjunto residencial operário da cidade de São Paulo, exemplar tombado, representativo do primeiro ciclo industrial e documento arquitetônico ligado à imigração italiana em São Paulo.
5 Donald Pierson (1900-1995), representante da chamada Escola Sociológica de Chicago no Brasil, interessou-se especialmente pelas relações raciais afro-brasileiras.
6 Excerto de carta de Donald Pierson a Virgínia Bicudo, DDPHP-SBP, 1965.
7 Roger Bastide (1898-1974), participante da missão francesa que veio ao Brasil na época da fundação da Universidade de São Paulo. Bastide chegou à capital paulista em 1938, para substituir Claude Lévi-Strauss na cátedra de Sociologia I, no Departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo. Sua enorme contribuição para as áreas de Sociologia, Antropologia e Psicologia Social prolonga-se até às áreas da Psicanálise, da Psiquiatria, da Filosofia, da Literatura e das Artes. Retornou à França em 1984, onde passou a lecionar na Universidade de Paris.
8 Florestan Fernandes (1920-1995), sociólogo, professor, político, graduado em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Iniciou a carreira docente como assistente do Prof. Fernando de Azevedo; mestre pela Escola Livre de Sociologia e Política e doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, substituiu interinamente Roger Bastide na cadeira de Sociologia até 1964, quando se tornou efetivo. Aposentado compulsoriamente pela ditadura militar em 1969, foi professor visitante na Universidade de Columbia, professor titular na Universidade de Toronto e professor visitante na Universidade Yale. Retornou ao Brasil em 1978, tornando-se professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, retomando, mais tarde, sua cátedra na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo.
9 Esta informação foi colhida em Ata da SBPSP, período de abril de 1957 a novembro de 1965.
10 Rino Levi (1901-1965), arquiteto e urbanista formado pela Escola Superior de Arquitetura de Roma, professor da FAU-USP, também autor de projetos de residências, prédios comerciais e complexos hospitalares.
11 Bilhete encontrado na mesa do consultório de Virgínia Bicudo, 1993. 

ARTIGO: Virgínia Bicudo e a psicanálise como lugar de escuta

Virgínia Bicudo e a psicanálise como lugar de escuta.*

Por Christian Dunker


A primeira forma de psicanálise praticada no Brasil se dá no espaço público, tendo uma jovem mulher negra à sua frente, assumindo forte abrangência social.

Virgínia Leone Bicudo nasceu em 1910 em Ribeirão Preto e morreu em 2003 em São Paulo. Negra e neta de escravos, ela se formou em sociologia. Em 1945 apresenta sua tese Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo onde afirma:
“Quanto mais subimos nas classes sociais, tanto mais aumenta a consciência de cor e tanto maior o esforço despendido para compensar o sentimento de inferioridade. […] Entretanto, a ascensão ocupacional não confere ao preto o mesmo status social do branco, consideradas as restrições demarcadas na linha de cor, ao passo que o mulato garante sua inclusão no grupo dominante, embora em sua personalidade permaneçam as consequências do conflito mental.”1
Esse processo que ela estudou de gradual reconhecimento do peso inesperado da própria cor encontra correlato na experiência profissional de Virgínia Bicudo. Desde a formação, quando entra na escola e se depara com o significante “negrinha”. Depois, no interior da própria carreira de socióloga, quando ela e a amiga Aniela Ginsberg se veem excluídas do relatório da pesquisa promovida pela Unesco para entender a questão da racialidade no Brasil. E, finalmente, quando tem sua prática de psicanalista questionada por não ter formação médica.
Tendo sido a primeira paciente de Adeleid Koch, refugiada austríaca que inaugurou o método de Freud em terras paulistas, ela já no fim dos anos 1930 passa a atuar como “educadora sanitária” e “visitadora psiquiátrica” tendo por função escutar as diferentes versões que rodeavam as crianças em dificuldade. Nos anos 1940, edita um programa de rádio que procurava escutar os problemas enfrentados por pais na educação dos filhos. Portanto, a primeira forma de psicanálise praticada no Brasil se dá no espaço público, tendo uma jovem mulher negra à sua frente, assumindo forte “abrangência social”.
Depois de ter sido tão insistentemente rejeitada pelas instituições de educação, de formação e de profissão, Virgínia passa a se dedicar, nos anos 1960 e 1970, a construir suas próprias instituições de psicanálise, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Concluído o período de estudos em Londres, ela retorna ao Brasil conduzindo com “mão de ferro”2 a psicanálise paulista durante a ditadura civil-militar.
Biógrafos3 e comentadores4 da obra de Virgínia Bicudo perguntam por que ela teria trazido tão pouco de seus estudos seminais sobre sociologia do preconceito de raça para a psicanálise. Seria isso um efeito do branqueamento pelo qual ela teria passado, ou então decorrência da própria ausência de tematização racial no interior da psicanálise? Talvez possamos entender essa curva transformativa como a passagem da preocupação com seu lugar de fala para o que poderíamos chamar de lugar de escuta, como ponto de localização subjetiva e objetiva do conflito. Como aponta Djamila Ribeiro,5 o lugar de fala é uma estratégia que permite dar visibilidade e reconhecimento àquele que fala, particularmente a mulher negra. Há pontos axiais da trajetória de Virgínia na qual o impacto de ser nomeada pelo outro deixa rastros e marcas. Mas há também uma série de declarações que denotam uma grande preocupação de Virgínia em responder a uma pergunta, que é sempre mais ou menos prisioneira da pergunta neurótica, a saber: qual é o meu lugar? Pergunta sintomática desde que acuse a demanda e a expectativa de que o Outro nos diga qual é nosso lugar, processo que socialmente sustenta a segregação. Isso aparece, por exemplo, quando ela fala de sua escolha pela Escola de Sociologia e Política:
“Lá na USP eram os grã-finos e eu não era grã-fina […] Lá não era meu lugar […] Eu queria me aliviar de sofrer. Imaginava que a causa de meu sofrimento fosse problemas sociais, culturais […] desde criança eu sofria preconceito de cor […] no segundo ano do curso encontrei a psicologia do inconsciente de Sigmund Freud. Aí disse: É isso que estou procurando.”
Como observa Ana Paula Musatti Braga, “se os pretos de classe inferior sentiriam mágoa frente à rejeição dos brancos de forma inconsciente, os pretos de classes intermediárias” – nas quais ela mesma se incluía – “sentiriam ódio, mágoa e ressentimento pela rejeição do branco, conscientemente reprimidos por medo de uma rejeição ainda mais acentuada.”6 Haveria assim uma espécie de duplicação do sofrimento na negritude, derivado da sobreposição de dois processos de negação. Primeiro há a negação que cria o ressentimento primário, associado com as primeiras experiências de apercepção da raça, depois sobrevém a negação que o neutraliza com uma “rejeição mais acentuada”.
A tese antecipa certos aspectos da leitura de Jessé de Souza de que o preconceito brasileiro incide sobre a cor, mas também sobre a forma como alguém pode “esconder” a sua cor por meio de sua personalidade.7 Esse duplo processo induz uma espécie de paradoxo pelo qual a formação de uma personalidade sensível, que assimila a gramática de reconhecimento pela educação e pelo estilo de vida sem que haja uma superação do preconceito, acaba por fortalecer seu peso na experiência subjetiva, confirmando e acentuando cada vez mais o sentimento de inadequação. À medida que o sujeito ascende socialmente ele reconhece cada vez mais o peso diferenciador da cor, tornando o conflito subjetivo ainda maior. E, inversamente – poderíamos acrescentar aqui –: à medida que o sujeito progride na sua análise, ele reconhece cada vez mais o peso proporcional de sua própria assimilação sintomática ao preconceito social, tornando o conflito objetivo ainda mais intenso.
No caso de Virgínia, essa dupla incidência do preconceito parece ter se focado ao menos na superfície nas críticas contra sua condição de não médica, deixando em segundo plano sua condição de mulher negra de origem interiorana. No I Congresso Latino-americano de Saúde Mental que ela ajudara a organizar junto com Durval Marcondes, ela é acusada publicamente por psiquiatras (todos homens):
“Eu estava sentada e todos os médicos de pé, todos gritando: ‘Absurdo! Psicanalistas não médicos!’ Foi horrível! Olha que eu quase me suicidei por isso. Você ouvir outras pessoas dizendo: ‘Você é charlatã!’ Ah! Você não fica de pé! Você vai pra casa e quer morrer.”8.
Ou seja, voltamos ao tema do lugar que não lhe pertence. Como se voltar para casa, fosse o destino e o lugar da mulher, negra e não médica.
Mas ela não desistiu. Nos anos 1960 funda o embrião da futura Sociedade Brasileira de Psicanálise e depois o grupo Psicanalítico de Brasília alternando residências em uma época na qual isso não era muito comum. Virgínia enriquece, passa a ser requisitada por ministros e senadores e desenvolve uma carreira fulgurante na psicanálise. Contudo, isso parece ter sido precedido por um movimento de deslocalização subjetiva. Uma espécie de inversão de seu lugar de fala, como negra “desvalida” e “hipossuficiente”, para o lugar de escuta assegurada, como analista de sua própria experiência, com mãos e ouvidos cor de ferro. Essa espécie de cura para a demanda de reconhecimento, que explica o caráter destruidor das experiências de nomeação (“negrinha”), de destituição de autoria (relatório Anhembi-Unesco) e de imputação de charlatanismo (pelos psiquiatras no Congresso Latino-americano de Saúde Mental), parece ter decorrido da reversão do próprio complexo provincial brasileiro. Lembremos que a grande virada acontece quando ela volta de Londres, tendo conhecido Melanie Klein, Bion e Virgínia Wolf, participado do grupo de Bloomsbury, das querelas psicanalíticas do pós-guerra, bem como feito sua reanálise com Frank Phillips. Ungida pelos mestres e avalizada por nosso próprio provincianismo colonial ela agora podia ter um lugar, ainda que não fosse o seu.
À esquerda, Virgínia Bicudo com o então presidente Juscelino Kubitschek na embaixada brasileira em Londres; à direita, no aeroporto em viagem na década de 1950.
Na reconstrução das origens da experiência psicanalítica brasileira que levei a cabo no livro Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros, observei que a psicanálise possui uma origem bífida em São Paulo. De um lado está Frank Philipps, um playboy australiano de costumes excêntricos e farto na ostentação de sua riqueza. Do outro lado temos Adelheid Koch, uma pobre refugiada judia, com dificuldades no manejo do português, embaraçada com a comunidade de homens psiquiatras. Notemos que Virgínia fez análise com os dois. Por hipótese, é como se na primeira análise ela tivesse enfrentado a mágoa e o ódio, o reconhecimento da partilha complexa entre neurose e partilha social da segregação. Já a segunda análise envolve o contexto específico de colocar-se como estrangeira, sem lugar, incerta quanto aos meios para pagar as contas, em meio a uma viagem para outra língua. Aqui reforça-se a segunda negação constitutiva da experiência racial: a rejeição mais acentuada, que lhe permitiu a desenvoltura social necessária.
No seu artigo de 1972 sobre a “A incidência da realidade social no trabalho analítico” ela dirá que “a orientação técnica, que preconiza ao analista abster-se de incluir na situação analítica sua realidade social ideológica, não implica alienação social”.9 Um bom exemplo de como o conflito entre as duas vertentes da experiência de sofrimento estão juntas, sem, ao mesmo tempo, encontrar uma unidade.
À esquerda, Virgínia Bicudo de turbante. À direita suas instruções de próprio punho, endereçadas à família, “mãe, irmãos e irmã”, sobre o destino do corpo depois da morte.
Contudo, há um terceiro tempo na vida de Virgínia. Junto com a velhice reaparece a questão da negritude. Ela passa a usar turbantes e falar do cabelo como marcador social. Readquire sua casa dos anos 1960 como parte de um movimento de voltar a um dado lugar. É aqui que talvez ela encontre seu lugar de escuta, para o conjunto de uma trajetória de vida. É o tempo no qual problemas familiares retornam de maneira inesperada. Nas palavras de Janaína Damasceno Gomes, “ela não teve uma morte branca, ela morreu como uma mulher negra10. Mas o gesto que acusa uma solução tanto para a demanda de ter um lugar, dado pelo Outro, quanto para a realização de seu próprio lugar, enquanto conquista simbólica e material, aparece nas instruções que ela escreve em 1983 sobre o destino de seu corpo depois da morte:
“[…] solicito fazer cumprir meu desejo de ser incinerada em lugar de ser enterrada.
O corpo sem vida retorna ao mundo inorgânico e em vez de tomar espaço em cemitério é mais inteligente que seja transformado em um punhado de cinzas atirado à terra.
Sejamos razoáveis. Estaremos sempre juntos! Somos da natureza.
São Paulo, 22 de dezembro, 1983″
É por isso que podemos dizer que Virgínia Bicudo não é apenas a primeira mulher não médica a se tornar psicanalista no Brasil, mas a primeira psicanalista brasileira, que nascida negra, tornou-se sem cor, para recuperar sua negritude como experiência de escuta.
Notas
1 Virgínia L. Bicudo, Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo (1938), edição organizada por Marcos C. Maio, São Paulo, Sociologia e Política, 2010, p.160.
2 Valadares de Oliveira, Carmen Lúcia (2006) História da Psicanálise em São Paulo. São Paulo: Escuta.
3 Ana Paula Musatti Braga, “Pelas trilhas de Virgínia Bicudo: psicanálise e relações raciais em São Paulo”, Revista Lacuna, 6 de dezembro de 2016.
4 Tânia Mara Campos Almeida, “Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo”, Cad. Pagu no.36, Campinas Jan./June 2011
5 Djamila Ribeiro, O que é lugar de fala?, Belo Horizonte, Letramento, 2017.
6 Ana Paula Musatti Braga, p. 8.
7 Jessé Souza, A Elite do Atraso. Rio de Janeiro, Leya, 2017.
8 Virgínia Bicudo, Projeto memória Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
9 Virgínia Bicudo, “A incidência da realidade social no trabalho analítico”. Em: Revista Brasileira de Psicanálise, Associação Brasileira de Psicanálise vol VI, n ¾ São Paulo, 1972.
10 Janaína Damasceno Gomes, Os segredos de Virgínia estudos de atitudes raciais em São Paulo(1945-1955) Tese Doutorado FFLCH, USP, 2013.
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