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domingo, 31 de agosto de 2014

Texto: "O trauma, generalizado e singular". Por Éric Laurent


O trauma, generalizado e singular*



Por Éric Laurent 

Desde o início de seu ensino, Lacan tomou distância de uma concepção do trauma como simples experiência do acidente. «Pois, afirmar da psicanálise e da história que, como ciências, elas são ciências do particular não quer dizer que os fatos com que elas lidam sejam puramente acidentais, senão factícios, e que seu valor último se reduza ao aspecto bruto do trauma.» 1. Assim, o trauma não pode ser tomado sem a estrutura.

     Esse ponto pode ser especialmente verificado nos traumatismos de massa. Com efeito, mesmo as contingencias sofridas por um grande número de pessoas ressoa de modo único para cada um. Esse é o ponto crucial da abordagem psicanalítica do tratamento dos traumas de massa2, como aqueles que foram experimentados pelos habitantes de Nova Iorque em 2001 e os de Madri em 2004: visar o singular do sujeito.

Duas cidades traumatizadas

     Esse tratamento dos traumas de massa, vividos em grupo, apresenta múltiplas fases. Num primeiro tempo, trata-se de articular o grupo e o indivíduo: «por um tempo, é determinante manter o que constituiu na situação concreta, o grupo, para poder desamarrá-lo e não desfazê-lo» 3.
     Podemos também observar esse aspecto no que nossa colega Maria Cristina Aguirre nos conta a respeito de seu trabalho, depois de 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque4. Enquanto voluntária no trabalho de ajuda psicológica aos traumatizados, ela foi designada para o Kid’s Corner, que acolhia as crianças que apresentavam sintomas relacionados aos atentados terroristas. Ela evoca o caso de uma menininha de três-quatro anos «cujo nível de angústia era tal que ela era como que tendo um empuxo a correr por todos os lados, deixando os policiais e os agentes do FBI loucos, enquanto os pais não conseguiam preencher os formulários necessários para dar queixa…» Ela testemunha : «Eu me dediquei a trabalhar com ela. Eu a acompanhei nessa fuga insensata; ganhei sua confiança e, pouco a pouco, obtive certa estabilização. O momento chave foi a instalação de uma espécie de fort-da simbólico: ela ia até seu pai e sua mãe, que ela tocava, e depois voltava para onde eu estava. No final do dia, ela pode desenhar e estabelecer contato com as outras crianças.»5
     Num primeiro tempo, as reações ao traumatismo são também grupais, segundo estilos «simbólicos» ou «de pânico» diversos. Na Espanha, as manifestações das multidões compactas ocupando praças e avenidas, em Madri como no resto do país, fazem parte da cultura, aquela da rua, das manifestações, do paseo. O luto espanhol é maciço e exteriorizado. Em Nova Iorque, a reação foi muito diferente. O processo de individuação passou imediatamente para o primeiro plano. Processos de «des-massificação» responderam aos mortos indistintos. Estabeleceu-se a lista precisa dos nomes, testemunhos dos parentes, dos amigos, ligados às velas colocadas ao longo das paliçadas de Ground Zero ou sobre as grades da igreja de Saint-Paul, que fica ali perto. O luto de massa se apresentava nas telas da televisão, pois a rua americana é a televisão. Para além da diferença de estilo simbólico, houve uma manifestação «de pânico». Manifestação de uma emoção, de um afeto, numa reação difícil de decifrar. O acontecimento e seu alcance excedem os comentários que tentam dar conta deles. Os comentaristas políticos e as «classes falantes» em geral tentaram reduzir o sem sentido produzido por esse acontecimento, mas o fato resiste, verdadeiro buraco no discurso.
     O horror é «traumatismo», no sentido clínico, na medida em que temos que lidar com mortes, feridas que deixaram sequelas físicas e psíquicas, mas também na medida em que ele cria um buraco no discurso comum. Quer seja no nível coletivo ou no nível singular, encontramos a impotência do discurso em ler o acontecimento. É essa impotência comum que o post-traumatic stress disorder, do DSM V tenta reduzir a um fundamento biológico, universal, transcultural.


A generalização do trauma

     A clínica clássica do trauma foi estendida, no DSM, durante o último quarto do século 20. Essa extensão decorre de um fenômeno situado na interface entre a descrição científica do mundo e aquilo que a excede.
     Na medida em que a ciência avança na descrição de cada uma de nossas determinações, desde a programação genética até a programação do meio ambiente global, passando pelo cálculo dos riscos possíveis, ela faz existir uma causalidade determinista universal. O mundo, mais que como um relógio, surge como um programa de computador. É nosso modo atual de ler o livro de Deus. Então surge o escândalo do contingente, do impossível de programar, do trauma. É na medida em que nos beneficiamos de uma melhor descrição científica do mundo que toma consistência a irrupção de uma causa não programável. Tudo o que não é programável se torna trauma. Ao ponto que alguns querem considerar a própria sexualidade como um post-traumatic stress disorder. Nosso corpo não é feito para ser sexuado, como mostra o fato de que homens e mulheres se comportam pior do que os animais.
     As tentativas de dissolução do sexual num trauma nos lembram que a psicanálise freudiana foi fundada precisamente sobre o abandono da teoria do trauma da sedução. Entre 1895 e 1897, Freud pensou, com efeito, poder reduzir a sexualidade a um mau encontro. Em seguida ele abandonou essa teoria e pensou que é na sexualidade como tal que era preciso encontrar a causa necessária do mal estar.
     Só vinte e cinco anos mais tarde, depois da primeira guerra mundial, é que Freud deu um sentido novo aos acidentes traumáticos e às suas consequências patológicas. Ele fez deles, então, um exemplo do fracasso do princípio do prazer e um dos fundamentos da hipótese da pulsão de morte. Freud deve ter conhecido a síndrome traumática de guerra, pois ele foi consultado como expert durante a guerra e logo depois. Jean-Claude Maleval6 lembra quanto Freud tomou partido contra os métodos utilizados pela psiquiatria alemã da época para tratar os traumatizados7.
     A segunda guerra mundial continuou a tendência liberal do tratamento das neuroses de guerra. Nós aprendemos, nessa extensão, que contrariamente ao que Freud pensava em 1918, o fato de ter sido ferido fisicamente não protege de uma neurose traumática. Oitenta por cento dos feridos graves apresentavam, e isso até muitos anos depois do acontecimento, síndromes de repetição, distúrbios fóbicos ou depressivos. Foi sobretudo o pós-guerra do Vietnam que mudou a concepção do tratamento do trauma em psiquiatria8. Não foi senão em 1979 que os veteranos foram recenciados, avaliados, inseridos em programas de reabilitação e que a sociedade americana se reconciliou com seus soldados traumatizados. Os psiquiatras americanos, altamente mobilizados em torno desse problema, revalorizaram o conceito de stress e a particularidade da reação que ele engendra. Foi a importância da mobilização dos psiquiatras e psicólogos americanos sobre o tema social da reinserção que fez o trauma sair do círculo estreito da psiquiatria militar para se tornar uma perspectiva geral da aproximação de fenômenos clínicos ligados às catástrofes individuais ou coletivas da vida social.
     O segundo fator que leva à extensão da síndrome é a patologia própria às megalópoles da segunda metade do século 20. Estas agem num duplo registro. Por um lado, elas engendram um espaço social marcado por um efeito de irrealidade. O admirável pensador Walter Benjamin9 chamava esse efeito de «o mundo da alegoria», próprio à cidade grande, onde o reino da mercadoria, da publicidade, do signo, mergulha o sujeito num mundo artificial, numa metáfora da vida. Mídia e televisão generalizaram esse sentimento de irrealidade, de virtualidade. Por outro lado, a aldeia global, lugar do artefato, é também o lugar da agressão, sobretudo sexual, da violência urbana, do terrorismo, etc.
     Foi nos Estados Unidos, inicialmente, que os grupos feministas quiseram fazer reconhecer o estupro como um trauma, não mais como um delito de direito comum, mas um crime.
     Certas categorias profissionais também demandaram reparação pelo stressque elas sofriam. Por uma espécie de careta da história, o sindicato dos condutores de trens alemães pediu reparação pelo stress produzido pelo fato de que a Alemanha é o país da Europa onde se suicida mais pulando sob os trens (um suicídio a cada cinco minutos).
     Dois fatores participam, portanto, da extensão da clínica do trauma. Por um lado, a experiência psiquiátrica dos traumas de guerra nos países democráticos, quer dizer, nos países no qual não se abandona seus cidadãos à morte sem palavras. Por outro lado, levar em conta a patologia civil do trauma estende a definição da experiência traumatizante àquela que comporta o encontro com um risco importante para a segurança ou para a saúde do sujeito. A lista dos perigos mistura catástrofe técnica, acidente individual ou coletivo, agressão individual ou atentado, guerra ou estupro.


A energia do trauma

     Desde 1895, Freud liga o núcleo da neurose e a síndrome de repetição. Ele menciona, em sua descrição da histeria de angústia, o despertar noturno seguido de uma síndrome de repetição com pesadelos. É só depois do isolamento do puro instinto de morte que ele separará os sonhos de repetição e a histeria, e falará, na síndrome de repetição traumática, de um fracasso da repetição neurótica, das defesas, do escudo para-excitação.
     Em 1926, quando modifica o sentido do «trauma do nascimento» de Otto Rank, Freud traz as concepções energéticas que ele havia anteriormente correlacionado com momentos de angústia diante das perdas essenciais. Freud distingue a angústia sentida no nascimento e que deriva, propriamente falando, do traumatismo da perda do objeto materno. Ele ousa fazer da perda necessária da mãe o modelo de todos os outros traumas10. É sobre esse fundo que é preciso escutar o aforisma que figura no texto sobre «A denegação» de 1925, quase contemporâneo do precedente, onde o objeto não deve ser encontrado, mas sempre «reencontrado»11, isto é, encontrado sobre o fundo de uma perda primordial.
     Lacan sublinhou que é no movimento mesmo em que comunicamos nossas experiências de perda, que fazemos a descoberta dos limites dessa comunicação, a saber, que a linguagem é um muro do qual nós nunca saímos. Na borda da estrutura de linguagem, um certo número de fenômenos clínicos decorrem da categoria do real. Esses fenômenos estão ao mesmo tempo na borda e no centro desse sistema da linguagem. O trauma decorre, portanto, de uma topologia que não opõe simplesmente o interior e o exterior. O trauma, a alucinação, a experiência de gozo, a angústia, são fenômenos que tocam no real e nos arrancam de nossa tendência a considerar a vida como um sonho, para continuar a dormir.


Os lugares do trauma

     Como abordar, mais precisamente, a topologia do trauma ? Lacan, desde 1953, propõe, para dar conta disso, inscrever a linguagem não sobre uma superfície, mas sobre um toro, «na medida em que sua exterioridade periférica e sua exterioridade central constituem apenas uma única região»12.

     Esse modelo apresenta a particularidade de designar um interior que está também no exterior13. Em primeiro lugar, portanto, o trauma é um buraco no interior do simbólico. O simbólico está aqui colocado como o sistema dasVorstellungens através das quais o sujeito quer encontrar a presença de um real. O simbólico inclui aí tanto o sintoma em seu envoltório formal quanto aquilo que não chega a fazer sintoma, ou seja, esse ponto de real que permanece exterior a uma representação simbólica, quer ela seja sintoma ou fantasia  inconsciente. Ele permite figurar o real em «exclusão interna ao simbólico». «Assim, o sintoma pode aparecer como um enunciado repetitivo sobre o real […] O sujeito não pode responder ao real a não ser fazendo dele sintoma. O sintoma é a resposta do sujeito ao traumático do real.»14 Esse ponto de real, impossível de se absorver no simbólico, é a angústia entendida num sentido generalizado, que inclui a angústia traumática.
     A posição do psicanalista que se deduz desse modelo é dupla. A princípio, ele é aquele que vai dar novamente sentido àquilo que não o tinha na história do sujeito. No acidente mais contingente, a restituição da trama do sentido, da inscrição do trauma na particularidade inconsciente do sujeito, fantasia e sintoma, é curativa. Essa possibilidade de apagamento do trauma é aquela à qual Lacan faz referência em «Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise» quando ele escreve que «o primeiro acontecimento retornará a seu valor traumático, suscetível de um progressivo e autêntico apagamento, se não reavivarmos expressamente seu sentido» 15.
     Em seguida, o psicanalista é aquele que «empuxa» a falar. Nós encontramos aí uma função do traumatismo enquanto que ele tem como consequência surpreendente deslocar os limites do discurso. Fala-se com as pessoas que não se falava e de coisas das quais não se falava. Membros de uma mesma família, que haviam se tornado estranhos um com o outro, reatam. Novos laços se criam. Nesse segundo sentido, o analista é um parceiro que traumatiza o discurso comum para autorizar o discurso do inconsciente. O analista sabe que a linguagem, em seu fundo mais íntimo, é fora de sentido.
     Em seu curso intitulado «Causa e consentimento», Jacques-Alain Miller nota que «o sujeito do significado é um traumatizado pelo significante», isto é, traumatizado por aquilo que Lacan nomeará da a «não-inscrição da relação sexual» $ depois de tê-lo chamado, num texto anterior de «trauma sexual». «Entre o significante enigmático do trauma sexual e o termo que ele vem substituir numa cadeia significante atual passa a centelha que fixa num sintoma[…] a significação, inacessível ao sujeito consciente onde ele pode se resolver.»16
            A originalidade da psicanálise no conjunto das terapias do trauma pela palavra é a de testemunhar da aptidão para a invenção do sintoma, solução que responde ao trauma da língua. A manifestação da loucura ordinária do mundo nos habituou, desde então, a viver com outras formas de um trauma onipresente. Ele não provoca a angústia social generalizada (tag : para distúrbio ansioso generalizado), em linguagem dsm, mas uma angústia «pré-traumática», que nos torna aptos a nos dirigir, um a um, à psicanálise a fim de, para além da angústia, encarar nosso pedaço de real.

Tradução: Cristina Drummond
  Revisão: Pierre-Louis Brisset



1 Lacan J., «Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise», Escritos, RJ, Zahar, 1998, p. 262.
2 Briole G., «Despues del horror, el traumatismo», El Psicoanalisis, n° 7, juillet 2004, p. 57-67.
3 . Ibid., p. 64.
4 . Aguirre M. C., «Septiembre 11, 2001 : Una experiencia», El Psicoanalisis, n° 7, pp. 68-70.
5 Ibid., pp. 68-69.
6 Maleval J.-C., «De l’extension du champ psy et de ses clivages», Cliniques méditerranéennes, n°71, 2005, p. 233-247.
7 . Freud, S., «Traitement électrique des névrosés de guerre», Résultats, idées, problèmes I, 1890-1920, Paris, puf, 1984, p. 251-252.
8 . Briole, G., Lebigot, F., Lafont, B., Favre, J.-D. Vallet, D., Le traumatisme psychique : rencontre et devenir, publié par le Congrès de Psychiatrie et de Neurologie de langue française, Paris, Masson, 1994.
9 . Benjamin W., «Paris capitale du xixe siècle» (1935), Œuvres, Tome iii, Gallimard, 2000, p. 59.
10 Freud S., Inhibition, symptôme et angoisse, Paris, puf, 1973, pp. 99-100.  «A situação na qual ele sente a ausência da mãe, sendo mal compreendida, não é para ele uma situação de perigo, mas uma situação traumática […]. A primeira condição determinando a angústia que for introduzida pelo próprio eu (moi) é, portanto, aquela da percepção da perda do objeto[…]. A situação traumática criada pela ausência da mãe se afasta sobre um ponto decisivo da situação traumática do nascimento. No momento do nascimento, com efeito, não havia objeto cuja ausência se pudesse sentir.»
11 Freud S., «La négation», Résultats, idées, problèmes II, 1921-1938, Paris, puf, 1985.
12 Lacan J., «Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise», Escritos, RJ, Zahar, 1998, p. 322.
13 Luminet J.-P., L’Univers chiffonné, Paris, Fayard, 2001, p. 325. O resultado foi conseguido a partir da definição de uma grandeza chamada «gênero» de uma superfície fechada desde 1813 por Simon Lhuilier. «Pode ser também definido por qualquer superície fechada, e ele é chamado “gênero”. O gênero do toro é 1, o da esfera é 0, o de uma esfera munida de T punhos é T.»
14 Miller J.-A., «Le Séminaire de Barcelone sur Die Wege der Symptombildung»,Le symptôme charlatan, Paris, Seuil, 1998, p. 51.
15 Lacan J., «Função e campo da fala…», op. cit., p. 262.
16 . Lacan J., «A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud»,Escritos, RJ, Zahar, 1998, p. 522.


* Extraído do site do XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano 


terça-feira, 29 de julho de 2014

Ciclo de Conferências em Niterói (EBP - Rio)

Ciclo de Conferências em Psicanálise  - Niterói


Coordenação: Ana Lúcia Garcia de Freitas

     Neste semestre, daremos continuidade ao ciclo de conferências, tendo como tema: “Considerações sobre o trauma”. A noção de trauma esteve presente desde os primórdios da psicanálise. Partiremos de Freud, circunscrevendo os diferentes momentos da construção desta noção em sua obra. O trauma, como experiência inevitável que todo falasser é exposto no encontro com a língua, deixa marcas de gozo que ultrapassam as possibilidades de simbolização. Outro ponto a ser abordado:  a face de um real inesperado e inassimilável em si mesmo. Por último, não se sabe como antecipar como o trauma vai incidir em cada um, mas, cada um vai precisar se haver com as marcas deixadas por ele. Então, o recalque e a fantasia podem ser os recursos para saber lidar, no entanto, nem sempre pode-se lançar mão destes. Serão três conferências:

Dia: 19/8 , às 19h30  -   O Trauma em Freud
Conferencista: Maria Silvia Garcia Hanna

Dia: 9/9 , às 19h30   -   O encontro do real traumático
Conferencista: Vanda Assunpção Almeida

Dia: 30/9 , às 19h30  -   Trauma e Fantasia
Conferencista: Paula Borsoi

Local: Rua Lemos Cunha, 442 – Icaraí – Niterói


Inscrições: Secretaria do ICP – Tel: 2286-7993

Valores: Profissionais – R$90,00
               Estudantes – R$30,00

domingo, 27 de julho de 2014

Uma leitura psicanalítica sobre a depressão.

Por Flavia Bonfim

A depressão não existe enquanto uma estrutura clínica, nem sequer constitui um “sintoma” propriamente dito para a psicanálise. Em Inibições, sintomas e angústia, Freud (1926) afirma que a depressão é uma inibição generalizada. A inibição implica em uma restrição do funcionamento do eu. Neste livro, Freud nos dá vários exemplos de inibições: da função sexual, da função da nutrição, da locomoção (indisposição e fraqueza) e do trabalho intelectual. Por ser a depressão uma inibição generalizada, podemos reconhecer todas essas inibições e muitas outras nos deprimidos.
Bittencourt (1997) assinala que sob a denominação depressão “estão designadas modalidades diferentes de expressão do sofrimento do sujeito” (ibid., p. 285) Diferentemente da tendência atual, a psicanálise não usa o rótulo de depressão para as mais variadas situações psíquicas. Atualmente, a qualquer sinal de tristeza, o sujeito já se diz deprimido ou é diagnosticado com tal quadro. Contudo, não podemos negar o número crescente de sujeitos em estados deprimidos na sociedade contemporânea. Segundo Bittencourt (ibid.), isso se justificaria pela própria característica da sociedade que vem promovendo a felicidade como objeto de consumo, excluindo o lugar para a falta, dificultando, assim, que os sujeitos se deparem com a perda. A autora salienta também que colocar a depressão como uma “doença” é uma maneira de instalar o sujeito no lugar de vítima das vicissitudes da vida, desresponsabilizando o sujeito da dor de existir. Isso implica em assinalar ao sujeito que ele não tem nada a fazer por si a não ser usar os medicamentos apropriados para curar esse mal, que é um modo de negligenciar a causalidade psíquica existente no fenômeno da depressão. Isso não quer dizer que a medicação não seja indicada e necessária em alguns casos.
Jimenez (1997) escreve que a depressão é o contrário do luto, na medida em que este é um trabalho espontâneo do simbólico. Na depressão, lidamos com um luto congelado, eternizado, pela falta de trabalho de elaboração. Ou seja, o sujeito encontra dificuldades para se referenciar na perda, não querendo se reconhecer como um sujeito faltoso, pois isso implicaria em remetê-lo à castração. D dificultando que os sujeitos se deparem com a perda e atrav
O luto, em oposição à depressão, implica em conhecer, como assinala Freud (1917), que o objeto amado não existe mais, cabendo ao sujeito se perguntar se deseja partilhar do mesmo destino. Se essa questão for evitada, nos escreve Jimenez (1997), “a tristeza se eterniza e se torna depressão”. (p. 201)
            Convém neste momento fazermos uma distinção entre luto e a depressão. Mas antes comecemos com suas semelhanças. Esses estados se caracterizam por uma profunda tristeza, pela diminuição do interesse no mundo externo e pela inibição de todas as funções do eu. Entretanto, observamos no luto uma diferença radical: “A perturbação da auto-estima não está presente no luto; afora isso, porém as características são as mesmas” (FREUD, 1915, p. 250) Na depressão, nos deparamos com a baixa auto-estima, as auto-acusações e auto-humilhações.
            A depressão pode ser suscitada por uma perda, contudo, pode ocorrer do sujeito nem saber o que perdeu. Ou quando sabe quem perdeu, nos afirma Freud, ele não “sabe o que perdeu nesse alguém.” (ibid., p. 251) Freud argumenta que o “objeto talvez não tenha realmente morrido, mas tenha sido perdido enquanto objeto de amor.” (ibid., p. 251)
            Jimenez (1997), então, considera que na depressão a pessoa amada foi colocada no lugar de depositário de Ideal do Eu.    Bittencourt (1997) acrescenta que o estado depressivo é um efeito do confronto com a falta, com o buraco no Outro. Um buraco irreparável que leva o sujeito a remanejar suas identificações imaginárias com as quais tentava preencher sua própria falta.
            Jimenez (1997), citando Lacan, define a depressão “como um pecado, uma covardia moral frente ao dever do Bem Dizer, de se referenciar na estrutura, o que seria equivalente a se reconhecer desejante.” (p. 202) Como já foi assinalado, o deprimido se entristece quando perde aquele ou aquilo que estava como depositário do Ideal do Eu, quando se depara com a falta no Outro. O deprimido agarra-se ao Outro, colocando-o no lugar de onipotência, num lugar idealizado. Diante dessa suposta onipotência e perfeição atribuída ao Outro, só resta ao deprimido se sentir sem valor, incapaz. O deprimido está preso a um ideal e não quer largá-lo, não quer saber sobre a falta de onipotência no Outro. Pois deparar-se com a falta no Outro, é deparar-se com sua própria falta, é assumir sua castração – o que implica em colocar-se como desejante.
            O que faz o deprimido? Ele justamente não quer saber do seu desejo, chegando ao ponto de renunciá-lo – daí a falta de disposição do sujeito em depressão. Todavia, não querer desejar, implica em ficar triste, sem apetite, sem libido, sem ânimo, em se auto-recriminar, pois o desejo é o que impulsiona a vida. Mas do que o deprimido se culpa? Ele se culpa de ter cedido ao seu desejo. Culpa-se também pelo buraco no Outro, pois prefere pensar que é sua responsabilidade a abrir mão que uma idealização.
            A ausência de desejo, nos escreve Jimenez (ibid.), também pode se produzir quando o sujeito fica sem causa. Ou seja, quando não sabe mais pelo que desejar, quando já lutou muito por algo e não almejou o que queria, quando se desiludiu, ou quando atingiu sua meta. Sobre este último ponto, Jimenez (ibid.), observa que é comum a depressão em sujeitos bem sucedidos, quando alcançaram o ponto mais desejado.
Quanto à perda de um ideal, de uma desidealização no Outro, Alberti (1997) aponta que tal fenômeno não é difícil, visto que a consistência do Outro tem sido abalada na contemporaneidade, como por exemplo: a falência do Outro parental e do Outro do Estado. Daí a autora supõe o aumento estatístico da clínica da depressão. Há, na atualidade, o desaparecimento da imagem de autoridade. Autoridade entendida como uma referência no qual o sujeito pode se apoiar. Assistimos as figuras de autoridade, de modelo, serem destruídas. Os pais já não exercem tanta influência sobre seus filhos. Antes a vontade do pai era lei - o que de certa forma sustentava a vida dos filhos. Os professores são ridicularizados, a figura de Deus já não é tão fundamental como era até o século XIX, os governantes estão desacreditados, não existem mais líderes influentes na sociedade.  Diante dessa falta de sustentação, o sujeito se encontra desamparado. Ele não consegue construir meios de lidar com a falta de garantias, com as incertezas, que é inerente a vida. Cabe assinalar que o desamparo faz parte da constituição do sujeito, mas tais referências permitiam certo suporte imaginário para lidar com a falta radical de estrutura.
            Diante disso, poderíamos nos perguntar: Qual o trabalho possível diante da depressão?
Jimenez responde: “O Bem Dizer como lei ética do trabalho analítico pode ajudar a transformar a depressão em luto” (1997, p.201) Frente a depressão, a psicanálise tem uma arma radical: o desejo. (ibid.)

REFERÊNCIAS:

ALBERT, Sonia. Quadros nosológicos: depressão, melancolia e neurose obsessiva. In: ALMEIDA & MOURA (orgs.) A dor de existir e suas formas de expressão clínica: tristeza, depressão, melancolia. Kalimeros – Escola Brasileira de Psicanálise, Rio de Janeiro: Contra Capa, 1997. 217-227 p.

BITTENCOURT, Maria. As lágrimas de Maria. In: ALMEIDA & MOURA (orgs.) A dor de existir e suas formas de expressão clínica: tristeza, depressão, melancolia. Kalimeros – Escola Brasileira de Psicanálise, Rio de Janeiro: Contra Capa, 1997. 285 – 293 p.

FREUD. Sigmund. Inibição, Sintoma e Angústia (1926). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. Rio de janeiro: Imago Ed., 1996. v. XX.

_______________ Luto e Melancolia (1917). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. Rio de janeiro: Imago Ed., 1996. v. XIV.


JIMENEZ, Stella. Depressão e Melancolia. In: ALMEIDA & MOURA (orgs.) A dor de existir e suas formas de expressão clínica: tristeza, depressão, melancolia. Kalimeros – Escola Brasileira de Psicanálise, Rio de Janeiro: Contra Capa, 1997. 199-206 p.





















terça-feira, 22 de julho de 2014

Texto: "De um outro olhar sobre a deficiência." Por Kristell Jeannot

De um outro olhar sobre a deficiência*

Por Kristell Jeannot


Um de meus próximos é deficiente, ele é deficiente físico1.
Eu vivi diariamente ao seu lado durante vinte anos, e pude constatar o olhar que as pessoas colocavam sobre ele nos lugares públicos, os seus comportamentos em relação ao seu olhar. Eu pude ler a repugnância sobre o rosto de alguns passantes, também o medo, quando alguns se afastavam, para longe, para não tocar no meu irmão, como se acreditassem em ser contaminados! Sempre o olhar, o olhar inocente, impedindo o anonimato repousado da identificação entre os pares de uma mesma sociedade, atraído pela diferença física de meu irmão, acomodado, sentado dentro de uma concha.
Veem-se assim poucas pessoas deficientes nas ruas!
É verdade que muitos estão realocados nos centros especializados. Nestes lugares, eles são alimentados, acomodados e ocupados pelas atividades in situ, então, por que sair?
É verdade que as pessoas deficientes são poucas, e mesmo jamais presentes nos órgãos representantes de nossa sociedade, semelhantemente, na televisão.
Porém, nossa sociedade se agarra no dia anual do Téléthon, onde convivem estrelas e pessoas em cadeira de rodas. É lamentável que este único significante, “deficiente”, termine por recobrir o ser destas pessoas.
Ao lado do meu irmão, diante de certos olhares, eu senti cólera e vontade de ir embora, de se comunicar com as pessoas para dar um testemunho sobre a vida de meu irmão, e de lhe perguntar sobre o que lhes provocavam medo, pois é disto que se trata: a diferença, até mesmo o desconhecido lhes provoca medo. Ou então esses passantes reencontravam nele a castração incarnada, a condição humana, em suma, frágil, podendo se estragar ou se quebrar através de um reencontro contingente com o real. É próprio do Homem não querer saber nada da sua condição mortal. Isto se chama recalque.
Esconder esta deficiência como eu não soubera ver!
A propósito, meu irmão, logo que cresceu, atravessou um período onde não queria mais sair, ou, logo que saía, baixava a cabeça. Ele tinha vergonha. Ele estava triste. Apoiado por seus próximos, ele conseguiu atravessar esta fase. Ele ignorava os olhares, os olhares que vinham interpretar seu estado sem o conhecer.
O real de sua deficiência está duplicado, pela interpretação de sua situação que lhe é reenviada pela sociedade, através do seu olhar e da sua maneira – eu falo de modo geral – de definir suas prioridades, o sustento das pessoas em situação de deficiência: assistir, antes de tornar acessível. Sim, é necessário mudar o olhar sobre a deficiência, privilegiando as capacidades destas pessoas.
Eu reencontrei com ele as dificuldades, até mesmo os impasses de simplesmente circular na cidade, quero dizer, em uma grande cidade. O real, meu irmão o vê diariamente. Isso se inicia ao despertar: ele não pode se levantar sozinho, ir aos banheiros sozinhos, se alimentar sozinho. É necessária outra pessoa, um ajudante para ele poder viver. Eu não me ocupei fisicamente de meu irmão. Eu era a sua irmã, mas por ocasião de meus estudos, trabalhei como assistente de vida no seio da Associação dos Paralisados da França. Enquanto profissional, eu pude constatar três pontos importantes:
-     O luto impossível diante de um funcionamento ideal do corpo transmitido por nossa norma social.
- A insuportável dependência do Outro. Eu me perguntei sobre qual seria o melhor modo de oferecer a independência a estas pessoas que eu acompanhava. Uma questão crucial, inscrita no coração da constituição subjetiva do sujeito no processo de alienação-separação. Um sujeito para existir, depois que se fixou ao Outro2, deve se desprender dele, ou mais precisamente, subjetivar a sua vida. Em uma situação comum isto não é evidente, vejam o período da adolescência, mas numa relação de dependência factual ao Outro a questão se coloca sobre a possibilidade de uma passagem da condição de ser o “objeto” assistido pelo Outro, para ser um sujeito, um sujeito que é e que a, que eventualmente pode ser produtivo. Aqui, faço referência à dimensão do ter, qualidade extremamente investida na nossa sociedade.
- Um risco de um deslizamento do sujeito, se tornando ainda mais dependente do que ele é, recobrindo uma falta afetiva, uma necessidade afetiva do Outro, que se manifesta por uma demanda de assistência de pessoas frequentemente isoladas socialmente.

Eu sou, por outro lado, psicóloga. Trabalhei em um dispositivo criado pelo Conselho Geral chamado “Acesso aos cuidados psicológicos para pessoas em situação de precariedade”, no qual acompanhei adultos geralmente psicóticos, às vezes reconhecidos como deficientes, e igualmente trabalhei no seio do que se chamava na época um CATTP, nos serviços de psiquiatria. Atualmente acompanho, na minha prática clínica, crianças e adolescentes autistas, psicóticos, ou apresentando algum retardo mental, qualificados em um estabelecimento pelo termo “deficiente”, e através de uma prática clínica liberal. Em relação aos pais das crianças deficientes, posso diferenciar dois tipos de acolhimento:
-                 O consolo de serem reconhecidos pelo Outro social nas suas dificuldades. Assim, os pais no IME são reconhecidos nos seus limites e nas suas dificuldades em cuidar de seus filhos. Depois desta nominação, seus filhos são identificados pelo Outro social e então são tomados a cargo pelas estruturas especializadas, e recebem auxílio financeiro necessário para a vida cotidiana. É preciso não esquecer, de fato, os negócios ligados à deficiência: o custo adicional do material (poltrona, proteções urinárias, adaptação do alojamento, e aquele do veículo, etc.), indo além da incapacidade de subvencionar as suas necessidades;
-                 A vergonha, a rejeição que recebi quando do anúncio desta nominação, dos adultos e das crianças, ou daqueles que acompanhei, no caso de uma deficiência psíquica. Isso os importuna pelo simples não reconhecimento da dificuldade. Entre eles, alguns me dão testemunham do aspecto “pejorativo” deste termo – que recebem como tal e, até mesmo, a incompreensão sobre o seu sentido. O termo “deficiente” vem do Outro, é um termo “universalizante”, um significante mestre, como se denomina na psicanálise, que recobre uma multiplicidade de dificuldades singulares e se mostra necessário para “subjetivar” o sujeito, para encontrar nele uma definição pessoal, associada ao que ele ressente como sendo “sua” dificuldade. Cada pessoa em situação de deficiência vai sentir sua vida, seu corpo, de maneira singular. É importante não menosprezar o poder de um significante, que nomeia um estado, um ser, que o representa, mas que fecha também aquele que aí está afetado. Este termo fatídico “deficiência” é praticado pelo aparelho burocrático para estruturar o acompanhamento destas pessoas, mas é importante não esquecer seu efeito segregativo sobre a sociedade, deixando difícil a invenção da identidade pelos sujeitos ditos “deficientes”. Como eles gostariam de ser apresentados, por quais significantes desejariam ser reconhecidos? Um modo completamente diferente seria percebê-los sobre o dia da diferença e das dificuldades, tomados um por um.
Em vez de sentir piedade e empatia, em vez de lhes darem uma vida pensada pela sociedade, eu gostaria que a gente deixasse de uma vez por todas a nossa parafernália do (bem)-pensentido, e que a gente se esforçasse para compreender seuolhar sobre o mundo, em descobrir as suas ideias, para que este mundo, onde nós os deixamos impotentes, possa se tornar, para todos, o nosso mundo.


1. Ele é doente motor cerebral, devido a um acidente no seu nascimento.
2. Por exemplo, que isto não seja lógico: o sujeito autista é um sujeito que não está fixado ao Outro. Ele se mantém a distância do Outro, no seu corpo, se recusando, às vezes, em ser tocado, e na sua língua, restando, às vezes, mudo.

*Extraído da revista Lacan Cotidiano. http://ampblog2006.blogspot.com.br/2012/06/lacan-cotidiano-n-211-portugues.html

Artigo: "O homem e A mulher na operação com o semblante".



É com entusiasmo que informo que um novo artigo meu foi publicado na Revista aSEPHallus em co-autoria com a psicanalista Ana Maria Medeiros da Costa*, intitulado: 
"O homem e A mulher na operação com o semblante". 

Resumo
No Seminário 18, Lacan formaliza que o discurso é um semblante, sendo ele uma maneira de organizar o gozo. O semblante é um efeito, quer no plano da imagem, quer no plano do significante, que busca dar conta do lado insuportável da disjunção entre homens e mulheres. Ou seja, um recurso para operar com a ausência de relação sexual. Essa disjunção deriva do fato do homem, que ele nomeia como touthhomme, encontrar seu lugar na relação sexual por meio do significante fálico. A mulher, sem um recurso simbólico para fundamentar seu ser, só pode ocupá-lo na qualidade de uma mulher – o que vem demarcar que ela é não-toda referida à função fálica. Isso nos permite pensar, então, esse seminário como uma “preparação”, uma “escritura”, que Lacan realiza para chegar até as fórmulas da sexuação no Seminário 20.
Palavras-chave: semblante, relação sexuada, real, função fálica.

*Ana Maria Medeiros da Costa
Psicanalista
Pós-doutora pela Universidade de Paris XIII (Paris, França)
Docente da UERJ e coordenadora da Rede de Pesquisa Escritas da Experiência (Rio de Janeiro, Brasil)
Autora dos livros: “Clinicando” (APPOA, 2008); “Sonhos” (Jorge Zahar, 2006), “Tatuagem e marcas corporais” e “Atualizações do sagrado” (Casa do Psicólogo, 2003)
E-mail: medeirosdacostaanamaria@gmail.com



Artigo completo no link: 

sábado, 12 de julho de 2014

Texto: Escutem os autistas!

ESCUTEM OS AUTISTAS !*

Por Jean-Claude Maleval


Os autistas que escrevem não são loucos literários. Eles não acreditam, como esses últimos, ter feito uma grande descoberta. São sujeitos que devem ser levados a sério. Eles se exprimem para mostrar que são seres inteligentes, paraa serem tratados com mais consideração, e para pedir respeito para suas invenções elaboradas para conter a angústia. Eles desejariam que se interditasse legalmente sua escuta para submetê-los, mais frequentemente sem seu consentimento, a métodos de aprendizagem ? É preciso tomar o partido de escutá-los ou o de coagi-los ? Escolher escutá-los expõe a se confrontar com opiniões perturbadoras.
   Uma das autistas de alto nível dentre as mais conhecidas, Donna Williams, não hesita, em relação ao tratamento do autismo, a se engajar fortemente : « a melhor abordagem », escreve, seria «  aquela que não sacrificasse a individualidade e a liberdade da criança com a idéia que se fazem da respeitabilidade e de seus próprios valores os pais, os professores como seus conselheiros ». Uma outra confirma: « … as pessoas que mais me ajudaram foram sempre as mais criativas e as menos ligadas a convenções 2»  A psicanálise não é uma, ela é múltipla, como o são as práticas psicanalíticas ; elas têm todas entretanto um ponto em comum : são fundadas sobre a escuta do outro.  Sonhar em interditar legalmente a escuta de um grupo humano revela uma ideologia política subjacente das mais inquietantes. Certamente, nem toda escuta é psicanalítica, mas como o legislador fará a diferença entre a prática psicanalítica nociva da escuta e a benéfica autorizada ? É ir além de seu papel de defender as abordagens surdas para a escuta das singularidades do sujeito autista ? Isto parece estar em ruptura com a Declaração dos direitos das pessoas autistas, proposta por Autisme Europe e adotada pelo Parlamento Europeu em 9 de maio de 1996. Nesta última, é demandado reconhecer e respeitar os desejos dos indivíduos, de sorte que os autistas deveriam ter  « o direito de não serem expostos à angústia, às ameaças e aos tratamentos abusivos». Como isso poderia se fazer sem os escutar?
   Todas as práticas psicanalíticas têm em comum a defesa do respeito do singular e sua não reabsorção no universal.  É o que desejavam unicamente os autistas que se exprimem. Não é aos estudos randomizados permitindo a avaliação científica impecável às quais convém demandar em primeiro lugar como fazer aí para tratar o autismo ; são os sujeitos concernidos que têm mais a nos ensinar. Eles possuem um saber precioso sobre si mesmos. Levemos a sério os conselhos dados por Jim Sinclair aos pais, também pertinentes para os educadores e os clínicos : « nossos modos de entrar em relação, afirma em nome dos autistas, são diferentes. Insistam sobre as coisas que suas expectativas consideram como normais, e reencontrarão a frustração, a decepção, o ressentimento, talvez mesmo a raiva e o ódio.  Aproximem-se respeitosamente, sem preconceitos, e abertos a coisas novas, e voces encontrarão um mundo que não teriam podido jamais imaginar3». Uma autista muda culta tal como Annick Deshays mostra-se também veemente para reivindicar um  cuidado dos autistas que não faça impasse sobre a singularidade deles :  « Por que fazer das discussões intermináveis sobre os escritos oficiais que dizem respeito aos encargos das pessoas autistas se os interessados eles mesmos não têm o direito às informações, ainda menos à palavra ?»escreve em seu computador. Ela se opõe aos métodos educativos que elaboram a priori o programa das etapas do desenvolvimento a franquear :  « Elaborar um plano científico de educação com os autistas, de maneira uniforme e unilateral, dispensa um regime de ditadura protetora, afirma. […] É mais importante  de início achar a faculdade (ou as faculdades) de cada pessoa autista antes de estabelecer um passo educativo». Ela considera que « Fazer  comportamentalismo é incitar tornarmo-nos « fáceis » por uma formatação que reduz nossa liberdade de expressão ; é endurecer nosso grave problema de identificação e de humanização». Ela procurafazer-se entender pelos especialistas para passar a seguinte mensagem :  « Dizer aos que decidem, desde hoje, que pensar por nós corre o risco de esvaziar a  « quintessência » de nossa razão de existir 5» Contra esses métodos, ela defende « o risco de um diálogo », à vontade de « domar o medo isolante», ela convida mesmo buscar  « gostar dos traços humorísticos próprios » da maneira dos autistas de « verem a vida », tudo isso, acrescenta, « obriga a trabalhar mais em unicidade do que em uniformidade, mais em relação dual que em propostas unilaterais ». Ao contrário da maioria dos autistas, ela pede para ser considerada como um sujeito capaz de uma criatividade que convém levar em conta : «Içar nossos conhecimentos segundo nossa vontade, sublinha,  desdobra um potencial  que  nos é próprio ». « Quanto mais tomo parte nas decisões que me concernem, acrescenta, mais tenho a impressão de existir por inteiro 6».
Na falta de serem ouvidos, muitos autistas terminam por se resignar ao que se lhe impõe ; em revanche, quando o sujeito possui os meios de se exprimir, ele se insurge. Assim Williams não esconde sua revolta na presença de certas técnicas educativas.  Nos anos 1990, ela fez um estágio na Austrália numa casa especializada para crianças com dificuldade. Ela observou lá dois educadores solícitos em seu trabalho com um autista. Ela ficou surpresa pelo desconhecimento deles do mundo inetrior da criança. « Eu fiquei doente, escreve, de vê-los invadir seu espaço pessoal com seus corpos, seu hálito, seus odores, seus risos, seus movimentos e seus barulhos.  Quase loucos, ele agitavam mordedores e objetos diante dela como dois bruxos muito solícitos esperando exorcisar o autismo. Segundo eles, aparentemente, faltava à criança uma overdose de experiências que sua infinita sabedoria « do mundo » sabia trazer para ela. Se eles pudessem utilizar uma alavanca para forçar a abertura de sua alma e entupi-la « de mundo », eles o teriam feito sem dúvida sem mesmo notar a morte de seu paciente na mesa de cirurgia. A menininhgritava e se balançava, tapando as orelhas com seus braços para amortecer o barulho e revirando os olhos para ocultar a matracagem da detonação visual. Eu observava essas pessoas, desejando que eles conhecessem, eles também, o inferno dos sentidos. Eu observava a tortura de uma vítima que não podia se defender numa linguagem compreensível. […] Esses cirurgiões operavam com ferramentas de jardinagem e sem anestesia 7» Sem dúvida se inspiravam num método clássico de aprendizagem, que consiste a apresentar um estímulo em sequencias repetidas, depois a observar a resposta da criança, e a dar uma consequência para reforça-la ou a inibir. É uma aplicação sistemática desses princípios que é defendida pelo método ABA, fundado por Lovaas. Isso durante dois anos, à razão de 40 horas por semana, com crianças cujo consentimento não é pedido, mesmo que saibamos que para maioria eles se ressentem das perguntas como intrusivas e ameaçantes.
Desde sua invenção a psicanálise perturba, revelando que o homem não é o senhor de si mesmo, contrariamente às ilusões da razão, ela não anuncia uma boa notícia. Todavia, a psicanálise perdura apesar das críticas incessantes, o que testemunha antes de tudo sua vitalidade.  Atualmente, é no terreno do autismo que se concentram os ataques contra a psicanálise, vindo em particular do « Autismo France », associação de pais da qual o deputado Fasquelle retoma o argumento em favor do métodoABA, submetendo um projeto de lei visando interditar as práticas psicanalíticas.  Em primeiro lugar, entre essas, o le packing, já praticado por Esquirol, sob o nome de enfaixamento úmido, cinquenta anos antes do nascimento de Freud...   Os partidários do método ABA saíram recentemente de uma controvésia científica legítima produzindo um filme de propaganda severamente condenado pela justiça seguindo as queixas de psicanalistas enganados pela diretora do filme.  O defensor de Sophie Robert, a diretora, tentou fazer valer que esta condenação conduziria à interdição dos filmes de  Mickael Moore se ela fosse confirmada. Mickaël Moore é um diretor americano de filmes engajados (Bowling for Columbine, Farenheit 9/11). Ele sofreu numerosos processos, e ganhou todos. Deve então haver uma diferença entre sua prática e a de Sophie Robert. Duas parecem evidentes. Mickaël Moore se coloca na cena e filma as questões que ele faz a seus interlocutores. Sophie Robert não aparece e corta na montagem certas questões das respostas dadas, o que muda evidentemente o alcance da resposta. Por outro lado,  Mickaël Moore interroga personalidades representativas das opiniões que combate ; enquanto que Sophie Robert interroga certamente algumas personalidades representativas, mas ela convoca além disso psicanalistas que ninguém conhece e que exprimem opiniões que só engajam a si mesmos. Quem quisesse utilizar o mesmo procedimento de propaganda para objetar contra o método ABA iria procurar um educador partidário deste método utilizando ainda as punições corporais 0 e não seria sem dúvida difícil de encontrar – até mesmo um nostálgico dos bons velhos coques  elétricos inicialmente utilizados por Lovaas. Tratar-se-ia certamente de propaganda porque o método defende hoje não maos recorrer ao condicionamento aversivo e às punições. Em poucas palavras,  se Mickaël Moore é tão presente em seus filmes, podemos deduzir que tem orgulho do que faz. Sophie Robert escolheu se esconder. Delion, Golse, Widlôcher e Danon-Boileau denunciam « uma montagem truncada a serviço de uma causa a demonstrar» e visando a lhes ridicularizar8. Os psicanalistas da ECF, Laurent, Stevens e Solano, não recuaram a fazer um processo e a deformação maligna de suas proposições foi confirmada pela justiça.
Os partidários da ABA militam contra uma psicanálise que tanto inventam quanto caricaturizam.Ela culpabilizaria os pais. Esta tese de  Bettelheim sempre citada não era mais unanimidade em seu tempo. Eles recusam desonestamente levar em conta que nenhum psicanalista sério não a sustenta hoje. Eles sublinham que o autismo seria um problema neurobiológico. Ora os dados mais favoráveis a  esta tese põem sempre em evidência que os elementos ligados ao ambiente  interferem com uma possível predisposição genética. Se é um fato bem estabelecido é que diversos métodos aplicados de maneira intensiva (e de preferência no caso a caso) chegam a modificar as condutas dos sujeitos, é preciso sublinhar que não existe nenhum tratamento biológico do autismo e que a descoberta da plasticidade cerebral dá conta da eficiência das práticas psicológicas tanto quanto dessas dos métodos  de aprendizagem.
Por mais bem intencionadas que sejam, esses últimos encontram limites. Sua eficácia, constata o relatório Baghdadli, é geralmente limitada à aquisição de uma competência específica focada pela intervenção estudada, de sorte que ela não implica numa mudança significativa do funcionamento da pessoa que se beneficia da intervenção10.
Certamente, os métodos de ensino invocam a seu favor as estatísticas eloquentes atestando sua eficácia. Sem entrar em intermináveis discussões sobre suas interpretações e sobre o que é realmente captado pelos números, sublinhemos, sobretudo, que é incontestável que os resultados ao menos equivalentes podem ser obtidos pooutros métodos que respeitam mais o sujeito. Se sustentando unicamente ao que contam as mães que conseguiram, pelos métodos empíricos de inspiração diferente, retirando seus filhos do retiro  autísticoparece claramente que a melhora obtida pela doçura e a brincadeira não são menores que aquelas adquiridas pela violência e a coerção. Quando os Copeland descobrem nos anos 60 que recorrer aos “carinhos-recompensas e aos tapas-punições » com sua filha melhora claramente  seu comportamento, eles creem ter encontrado a chave por tanto tempo procurada no tratamento do autismo. « Eles tentaram então fazê-la tocar todos os objetos diante dos quais ela tinha testemunhado terror. Eles eram incontáveis. Na primeira vez, ela gritou com todas as suas forças com muitas repetições, o passo pareceu impossível. Mas enfim eles a puxam solidamente pelo punho e administram-lhe uma correção a cada tentativa de resistência.  Já que tal era o método adotado, era preciso segui-lo. E, efetivamenteao curso de semana extenuantesas reticências de Anne claramente derreteram11» Ora as melhoras obtidas mais recentemente por Anne  Idoux-Thivet com seu filho não foram menores, entretanto ela sempre recusou a « usar o bastão e a cenoura », praticando uma « ludoterapia » orientada pelas reações, as angústias e as manifestações da curiosidade de seu filho12Em poucas palavras, a aproximação desses dois testemunhos opostos atesta que o que pode ser obtido pela violência pode ser melhor ainda pela brincadeira. O tratamento de  Dibs operado por V. Axline, apoiando-se nos jogos de criança acompanhados numa abordagem não diretiva, tinha sido estabelecido desde os anos 1960.
Uma outra mãe de uma criança autista, Hilde de Clercq, considerando a diversidade dos métodos chegou na seguinte constatação, a qual só podemos subscrever,« É bem mais agradável, para todo mundo, seguir o modo de pensar dessas crianças e de ficar positivo, do que impor-lhes se adaptarem e serem confrontados constantemente aos problemas  de comportamentoA melhor estratégia para evitar problemas de comportamento é antecipá-los 13».  Ora, para fazer isso, é incontornável levar em conta a maneira deles de lutar contra a angústia, o que as técnicas de aprendizagem negligenciam.
Todos os métodos de tratamento do autismo possuem seus sucessos e seus fracassos. Esta diversidade é resultado das diferenças consideráveis no funcionamento e nas expectativas dos sujeitos autistas. Entretanto, ela não tem o mesmo posicionamento ético: para os métodos comportamentais e cognitivo-comportamentais a fonte da mudança está situada essencialmente nas mãos do educador, e depois dos pais; em revanche, para os métodos que levam em conta a subjetividade, trata-se de estimular e acompanhar uma dinâmica da mudança inerente à criança. Os métodos psicodinâmicos fazem a aposta de uma responsabilidade do sujeito que pode conduzir até sua independência por vias que devem ser inventadas e não programadas antecipadamente (quem confiaria nos companheiros imaginários de Williams ou na máquina de compressão  de Grandin ?) ; as abordagens educativas operam uma outra escolha: elas trabalham com uma criança que deve ser guiada na rota de um desenvolvimento normalizadosuposto valer para todos. Daí elas chegam certamente com frequência a melhorar a autonomia delas, mas penam para favorecer sua independência.  Numerosos são hoje os autistas de alto nível que relatam como conseguiram a autonomia e a independência, nenhum dentre eles relatou ter sido beneficiado de maneira intensiva de métodos educativos, todos relatam em revanche ter inventado métodos muito originais para tornar compatível o funcionamento autístico deles com o laço social.
   A psicanálise do século XXI não é a caricatura combatida pelo « Autisme France ». A maioria de seus detratores ignora que alguns psicanalistas (certamente sobre esse ponto ainda minoria) consideram que o autismo não é uma psicose, que contra a opinião de Tustin o objeto autístico pode servir de apoio precioso para o tratamento, que as interpretações significantes ou edipianas são a proscrever, que uma « doce forçagem » (A. Di Ciaccia) é necessária para suscitar as aprendizagens, etc. O que fica então da prática analítica? No essencial a capacidade de acompanhar o sujeito em suas invenções originais efetuadas para lidar com sua angústia. Os métodos de aprendizagem conduzem talvez um autista à autonomia, mas nunca à independência em relação à sua família. Esses métodos postulam, aliás abusivamente, que um acompanhamento será sempre necessário. Numerosas são as experiências singulares que vêm contradizer esta asserção. Os testemunhos dos autistas atestam que nunca um autista pode aceder à independência sem ter se beneficiado de uma escuta benevolente e de um respeito de suas invenções.               É coerente que os que buscam apagar a fala dos autistas sejam os mesmos que se aplicam a uma propaganda caricatural para descrever as propostas dos psicanalistas.   

1 Williams D. Si on me touche, je n’existe plus. [1992] Robert Laffont. Paris. 1992, p. 290.
2  Grandin T. Penser en images. [1995] O. Jacob. Paris. 1997, p. 114.
3 Sinclair J. Don’t mourn for us. Autism Network International, Our voice, 1993, 1, 3 ; ou http://web.syr.edu/%7Ejisincla/dontmourn.htm
4 Deshays A. Libres propos philosophiques d’une autiste. Presses de la Renaisssance. Paris. 2009, p. 57.
5 Ibid., pp. 114, 116, 121, 124.
6 Ibid., p. 118.
7 Williams D. Quelqu’un, quelque part. [1994] J’ai Lu. Paris. 1996, pp. 38-39.
9 Témoignage de P. Delion. Dossier CIPPA.(Coordination Internationale entre Psychothérapeutes Psychanalystes s’occupant de personnes avec autisme).  Novembre 2011, p. 39. (www.cippautisme.org)
10 Baghdadli A. Noyer M. Aussiloux C. Interventions éducatives, pédagogiques et thérapeutiques proposées dans l’autisme. Ministère de la Santé et des Solidarités. Direction Générale de l’Action Sociale. Paris. 2007, p. 261.
11 Copeland J. Pour l’amour d’Anne. [1973] Fleurus. Paris. 1974, p. 39.
12 Idoux-Thivet A. Ecouter l’autisme. Le livre d’une mère d’enfant-autiste. Autrement. Paris. 2009.
13 De Clercq H. Dis maman, c’est un homme ou un animal ? Autisme France Diffusion. Mougins. 2002, p. 97.


* Texto extraido da revista "Lacan Cotidiano", número 155