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sexta-feira, 27 de julho de 2018

Comentários sobre o Escrito "Nota sobre a criança" de Lacan


Comentários  sobre o Escrito "Nota sobre a criança" de Lacan.


Por Flavia Bonfim 

"Nota sobre a criança" é texto de 1969 encontrado nos Outros Escritos, no qual apresenta considerações importantes sobre o sintoma da criança. Para ser mais preciso, esse texto trata-se de uma carta (duas folhas) endereçada a Jenny Aubry -   pediatra, que se tornou psicanalista e trabalhou com Lacan na Escola Freudiana de Paris. Trata-se de uma nota sucinta, mas da qual podemos extrair o que é essencial a respeito da criança no ensino lacaniano, não tendo sido este um tema frequente do qual Lacan tenha trabalhado. 

A proposta aqui traçada é lê-la passo a passo sem a pretensão, porém, de esgotar o assunto ou propor um entendimento completo da escrita de Lacan - o que seria ir na contramão do próprio estilo do psicanalista. Sendo assim, estruturo esses comentários da seguinte mandeira:  em itálico e negrito, segue o trecho do texto de Lacan e abaixo o desdobramento de alguns pontos.

Ao que me parece, ao ver o fracasso das utopias comunitárias, a posição de Lacan nos lembra a dimensão que se segue.
A função do resíduo exercida (e, ao mesmo tempo, mantida) pela família conjugal na evolução das sociedades destaca a irredutibilidade de uma transmissão – que é de outra ordem que não a da vida segundo as satisfações das necessidades, mas é de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo.” (2003 [1969], p. 369)

O fracasso das utopias comunitárias denuncia a impossibilidade dessas comunidades suprimirem a função da família, enquanto lugar de transmissão. Se essas comunidades aparecem como referência aqui é porque em 1969 (no ano em que foi escrita esta carta) estava em moda a difusão de organizações desse tipo, no qual se supunham poder dispensar a família na constituição psíquica. Sustentadas por um ideal de pretensões libertárias, acabaram por desconsiderar o que era particular a cada sujeito, tendo como efeito o que Lacan denomina “anonimato”.

A família é o resíduo, é o que resiste mesmo com a evolução das sociedades e nela se destaca a função da transmissão, do desejo, na constituição subjetiva. A ciência vem testemunhar a cada dia que não é preciso família para se fazer filhos, mas para fazer sujeito não há outra maneira. Por mais que existam formas distintas de organizações familiares, no seio delas se encontra um desejo no qual o sujeito pode ser marcado e constituído enquanto tal. Não basta satisfazer o bebê em termos do que é da ordem da necessidade (comida e higiene, por exemplo). Para que esse “bolo de carne” - como diz Lacan ao falar do ser humano ao nascer - possa vir a se constituir como sujeito, é necessário “um desejo que não seja anônimo”, é necessário que o desejo de alguém incida sobre ele.

“É por tal necessidade que se julgam as funções da mãe e do pai. Da mãe, na medida em que seus cuidados trazem a marca de um interesse particularizado, nem que seja por intermédio de suas próprias faltas. Do pai, na medida em que seu nome é o vetor de uma encarnação da lei no desejo.” (2003 [1969], p. 369)

O exercício das funções materna e paterna dá testemunho de um desejo não anônimo. No processo de constituição subjetiva do sujeito, a criança reconhece nos cuidados que a mãe lhe oferece a marca de um interesse particularizado. Não se trata de um cuidado que seria dispensado a qualquer criança, mas é um cuidado oferecido aquela criança específica. A marca é tão importante que vale mais uma marca negativa do que nenhuma marca. Quanto ao pai, sua função não diz simplesmente de uma lei autoritária de proibição do incesto, mas diz de uma lei sustentada no desejo, no desejo de um homem por uma mulher. O pai intervém com um NÃO para apontar que se trata de sua mulher, retirando mãe e filho de uma possível relação de completude. É por isso que Lacan propõe que o pai só tem direito ao respeito e ao amor do filho, a não ser que ele faça de uma mulher a causa de seu desejo.

“o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar.
O sintoma – esse é o dado fundamental da experiência analítica – se define, nesse contexto, como representante da verdade.” (2003 [1969], p. 369)

O sintoma da criança corresponde ao que há de sintomático na estrutura familiar, pois é a partir do Outro que ela se constitui, do desejo do Outro. A criança está fortemente ligada a seus pais. Sendo assim, qualquer perturbação no universo familiar, qualquer problema experimentado pelos pais, a criança se encontra informada, mesmo que nenhuma palavra seja dita sobre o assunto. Ela está informada sobre isso de maneira inconsciente. E ao perceber inconscientemente tal dificuldade, a criança pode tomar para si o que é problemático em sua família, produzindo, assim, ela própria um sintoma.

O sintoma é um signo (aquilo que representa alguma coisa para alguém) e Lacan (ibid.) no indica, então, que como qualquer sintoma, o sintoma da criança se mostra como um representante da verdade. A criança com seu sintoma denuncia, aponta, sinaliza, uma verdade a respeito de sua estrutura familiar. Ela está emitindo um sinal, uma mensagem. É um sinal que a criança nos dá que algo não vai bem com ela e com seu ambiente familiar.
           
Lacan (ibid.), sendo mais preciso, nos informa que o que há de sintomático na criança depende ou do casal ou da mãe. Vejamos cada caso em particular:


 “O sintoma pode representar a verdade do casal familiar. Esse é o mais complexo, mas também o mais acessível a nossas intervenções.”(2003 [1969], p. 369)

O sintoma representando a verdade do casal familiar aponta que para além da mãe e do pai, há um casal: um homem e uma mulher, sujeitos do desejo, implicados pela dimensão da falta, da ausência de completude, da ausência de relação sexual, que, portanto, podem estar complicados com isso. Em todo caso, a diferença deste tipo de sintoma para o que depende da mãe está no fato de que a criança não satura a falta materna; mesmo que haja uma dificuldade na incidência da função paterna sobre o desejo materno. Neste caso, o Nome-do-pai está inscrito.

O caso Hans de Freud é um bom exemplo deste tipo.  Hans apresentava, além do sintoma de fobia, fantasias mastubatórias, medo de animais grandes, sonhos aflitivos, encoprese, sentimentos ambivalentes para com o pai. Tudo isto podia ser interpretado segundo a situação conflitante para o menino – o amor pela mãe e o desejo de ocupar o lugar do pai, mas ao mesmo tempo o medo de ser devorado pelo desejo materno. Na falta de um pai que barre esse desejo da mãe, Hans recorre a um objeto fóbico, criando um sintoma, que funcione como metáfora paterna.

É possível pensar que esse tipo de sintoma é o mais complexo, pois está envolto numa trama maior: a do casal. Diz das marcas da história de vida de cada um, do lugar que a criança tem para cada um deles, de como a mulher encontra o significante do seu desejo no corpo de um homem e de como o homem faz da mulher a causa de seu desejo. Mas, a experiência analítica testemunha uma maior possibilidade de propiciar um deslocamento da criança do lugar de representar com seu sintoma a verdade do casal parental, por isso Lacan considera que é “o mais acessível a nossas intervenções.”


“A articulação se reduz muito quando o sintoma que vem a prevalecer decorre da subjetividade da mãe. Aqui, é diretamente como correlata de uma fantasia da criança implicada.
A distância entre a identificação com o Ideal do eu e o papel assumido pelo desejo da mãe, quando não tem mediação (aquela que é normalmente assegurada pela função do pai), deixa a criança exposta a todas as capturas fantasísticas. Ela se torna o “objeto” da mãe e não mais tem outra função do que revelar a verdade desse desejo.
A criança realiza a presença do que Jacques Lacan designa como objeto a na fantasia.
Ela satura, substituindo-se a esse objeto, a modalidade de falta em que se especifica o desejo (da mãe), seja qual for sua estrutura especial: neurótica, perversa ou psicótica.” (2003 [1969], p. 369-370, grifo do autor)

Neste caso, o sintoma depende da subjetividade da mãe e a criança está no lugar do fantasma materno, tamponando a falta da mãe. O pai não faz mediação, não incide como Nome-do-pai, e a criança é capturada pela fantasia da mãe. Assim, a criança completa a mãe, o Outro não aparece barrado e desejante, impossibilitando a mesma de sair do lugar de objeto e advir como sujeito. O que temos aqui é o caso da psicose.

Dizendo de outro modo, Lacan considera que a criança presa à fantasia materna, satura o desejo da mãe, substituindo-se, colocando-se no lugar de objeto a. Ela tampona a modalidade de falta do desejo materno, seja qual for a estrutura clínica da mãe. Isso nos permite destacar que não existe nenhuma relação de causa e efeito entre se a mãe psicótica, logo, o filho será também. Uma criança psicótica o é em função do lugar que ocupa no desejo da mãe, independente da estrutura dela. Isso porque a criança não é um mero receptor passivo das dificuldades materna e seu sintoma depende da maneira como ela subjetiva sua relação com a mãe.

Encerra Lacan:

Ela [a mãe] aliena em si qualquer acesso possível a sua própria verdade, dando-lhe corpo, existência de ser protegida.
 O sintoma somático oferece o máximo de garantia a esse desconhecimento; é o recurso inesgotável, conforme o caso, a atestar a culpa, servir de fetiche ou encarnar a recusa primordial.
Em suma, na relação dual com a mãe, a criança lhe dá, imediatamente acessível, aquilo que falta ao sujeito masculino: o próprio objeto de sua existência, aparecendo no real. Daí resulta que, na medida do que apresenta de real, ela é oferecida a um subornamento [subornement) maior na fantasia.” (2003 [1969], p. 370)

            Uma leitura que podemos fazer desse trecho é que Lacan (ibid.) aponta que quando a criança, além de se instalar na psicose ainda apresenta sintomas somáticos, oferece mais garantias ao desconhecimento da mãe de sua verdade, pois o problema ao situar-se no corpo permite deslocar mais facilmente a implicação da mesma naquilo pelo o qual o filho sofre. É o real físico e não psíquico, poderia-se pensar. Lacan complementa dizendo que se trata de um recurso inesgotável de desconhecimento, estando atrelado ao modo como a mãe irá lidar com o sintoma do filho em função de sua estrutura: 1) no caso das mães neuróticas, irá atestar a culpa - maneira que na neurose se lida com desejo e falta; 2) no caso da perversão normal do lado da mulher como mãe (o amor materno coloca a criança como objeto), pode chegar até a fetichização do objeto infantil; 3) em mãe psicóticas, a criança pode encarnar a recusa primordial.

Quanto a mãe psicótica, vale realizar uma consideração. A procriação é uma questão para todo sujeito, e é por meio de recursos simbólicos que ele poderá lidar com isso. Nela, o Nome-do-pai sempre entra em cheque, sendo o lugar onde o sujeito pode se referenciar. Por outro lado, o psicótico, em sua foraclusão do NP, pode ficar extremamente complicado neste momento da vida. Sendo assim, não tendo recursos simbólicos para atravessar isso, a criança pode encarnar o que foi absolutamente recusado, a castração, a falta.
            
Mais ainda, Lacan (ibid.) considera a criança nesta relação dual com a mãe dá a esta o objeto a em sua existência, em seu corpo como puro real, sem sentido, não simbolizável. Um objeto que Lacan diz faltar ao homem e que por isso ele procura na mulher. E quanto menos o sintoma da criança aparece como simbolizável, mais ele vem em troca no lugar da fantasia materna. Ou seja: “quanto mais a criança é deficiente mais ela chega perto do real, mais ela dá corpo a esse objeto, mais ela solicita de sua mãe que se abandone à inclinação, à tendência de seu fantasma em detrimento de sua verdade.” (MARIE-JEAN SAURET, 1997, p. 92)


REFERÊNCIAS:


·         LACAN, Jacques. Notas sobre a criança (1969). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2003. 369-370 p.

·         SAURET, Marie-Jean. Comentário sobre o texto de Jacques Lacan “Nota sobre a criança” In: O infantil e a estrutura. São Paulo: EBP-São Paulo, 1998. 104 p. Seminário "O infantil e a estrutura", realizado a convite da Escola Brasileira de Psicanálise - São Paulo, em agosto de 1997.








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