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quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Da queixa ao sintoma analítico: condição para o inicio de uma análise.


DA QUEIXA AO SINTOMA ANALÍTICO: 
CONDIÇÃO PARA O INICIO DE UMA ANÁLISE. 

Por Flavia Bonfim 

Quando se começa uma análise?  
Encontrar um analista a quem possa endereçar suas questões é um passo ou melhor um grande passo; as vezes, extremamente dificil para algumas pessoas. Por outro lado, não é o encontro com um psicanalista que garante que uma análise possa se dar. É preciso algo a mais. Esse algo a mais é encontrado do lado do paciente. Do lado do paciente encontramos a queixa, a demanda e a construção do sintoma analítico. 
Falemos um pouco mais sobre isso que na prática psicanálitica se encontra do lado do paciente:
Miller (1987), em seu texto “A psicanálise e a psiquiatria”, afirma que a demanda feita ao psicanalista deve partir de uma iniciativa própria do paciente (com exceção da análise de crianças, que são levados pelos pais). Este avalia seu sofrimento, interpretando “para si mesmo seu próprio sintoma a partir do que sabe e também não sabe, a partir do desconforto de tipo especial que lhe causa seu sintoma.” (MILLER, 1987, p. 113).
Ainda de acordo com Miller (1987) , na clínica psicanalítica, o sintoma, por sua vez, só existe na medida em que o paciente fala dele. Nela, não é o analista quem observa o sintoma, descreve e o classifica, dando-lhe um nome, mas é somente o próprio sujeito que o nomeia. É o próprio sujeito que pode dizer de sua questão, de seu sofrimento. Isto implica em uma clínica fundamentalmente feita pelos pacientes. Esse é um traço marcante da psicanálise, constituída desde seus primórdios com o discurso de seus pacientes. Nesse sentido, a psicanálise não se constrói como um campo de saber exterior à prática, mas se fundamente a partir dela.
A demanda de análise, todavia, não deve ser aceita em seu estado bruto, mas deve ser questionada pelo psicanalista. O sintoma deverá ser interrogado afim de saber a que ele está respondendo, que gozo vem delimitar. Nesse sentido, a psicanálise procura abordar a verdade do sujeito que se manifesta através de seu sintoma. O sujeito pode procurar um analista para se queixar de seu sintoma e até dizer que deles quer se livrar, mas isso não basta. Quinet (2000), em seu livro As 4+1 condições de análise, afirma que “É preciso que a queixa se transforme numa demanda endereçada àquele analista e que o sintoma passe do estatuto de resposta ao estatuto de questão para o sujeito, para que este seja instigado a decifrá-lo” (p. 16) Assim, cabe ao analista direcionar o sintoma para que ele se transforme em questão para o sujeito: “che vuoi?”, que queres?, introduzindo o desejo na dimensão sintomal.
O sintoma do qual o paciente se queixa deve, portanto, ser transformado em sintoma analítico, em enigma. Quando o sintoma é transformado em enigma, identificamos neste momento a “histerização do sujeito”, já que o sintoma passa a representar a divisão do sujeito. A histerização implica que o sujeito se dirija ao psicanalista com uma pergunta a respeito de seu sintoma: “O que isso quer dizer?” 
Dizendo de outro modo, é somente quando se opera uma passagem da queixa à produção de um sintoma analítico, da queixa a um enigma a ser decifrado por parte do paciente, que o inicio de uma análise pode realmente começar a se colocar. Posto isto, já não se trata mais de um pedido de cura, de solução para as dificuldades da vida. Algo se subverte no próprio sujeito e este passa a se interrogar: Por que repito essas mesmas situações? Por que me sinto tão desvalorizado e qual a função disto? Por que não consigo alcançar o que julgo querer?... Perguntas como estas que se orientam por um desejo de saber - passo inicial que permitirá ao paciente durante o processo de análise construir soluções singulares para lidar com seu mal estar de modo que ao seu final um saber-fazer com o seu sinthoma terá se produzido. 



REFERÊNCIAS:


MILLER, Jacques-Alain. A psicanálise e a psiquiatria. In: Falo – Revista Brasileira do Campo Freudiano, n° 1, Rio de Janeiro: Editora Fator, 1987. 113-124 p.

QUINET, Antônio. As 4 + 1 condições da análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.






Artigo: O que nos ensina o Fort-Da sobre o brincar em análise?


O QUE NOS ENSINA O FORT-DA
SOBRE O BRINCAR EM ANÁLISE? *

Por Flavia Bonfim 


*Artigo publicado na Revista Marraio, número 32-33, Rio de Janeiro, 2017

RESUMO: Este artigo visa apresentar o jogo Fort-Da presente no texto de Freud Além do princípio de Prazer e ampliar sua discussão a partir da leitura de Lacan sobre a compulsão à repetição. Tal consideração lacaniana nos leva a tomar o brincar em análise como linguagem e discurso determinado pela insistência da cadeia significante, mas também como ato da ordem do encontro com o real, na medida em que através da brincadeira a criança expressa o traumático, seu mal-estar e sofrimento. Nesse sentido, podemos tomar o brincar como um saber-fazer diante dos impasses que se colocam em torno sua existência .

Palavras-chaves: Fort-Da. Brincar. Repetição. Real.


Nada mais exemplar ao falar do brincar na criança do que nos reportarmos ao Jogo do Fort-Da, apresentado no texto freudiano Além do princípio de Prazer (1920). Contudo, esta não é a única contribuição de Freud a respeito da função da brincadeira, tendo em vista que no artigo “Escritos criativos e devaneios” de 1907, ele também faz uma consideração sobre os motivos que levam uma criança a brincar. É, portanto, partindo desses apontamentos e retomando a leitura lacaniana sobre o Fort-Da a partir da compulsão a repetição, que procuro delimitar a função do brincar em análise.

As observações de Freud sobre o brincar

            No texto “Escritos criativos e devaneios”, Freud (1907) nos lembra que a ocupação favorita e mais intensa da criança é o brincar, identificando que nessa atividade ela se comporta como um escritor criativo, na medida em que cria seu mundo próprio reajustando os elementos do seu exterior de uma forma que seja mais prazerosa. Assim, como destacam Oliveira & Fux (2014),  Freud coloca o brincar ao lado da criação artística.
A contrário do que se poderia supor, diz Freud (1907), a criança leva muito a sério sua brincadeira e nela mobiliza muita emoção, sabendo a distinguir da realidade. Sendo assim, o brincar não se opõe ao que é sério, mas ao que é real. Real, aqui, não na conceituação lacaniana desse termo, mas no sentido de realidade.
            O brincar tem tanta importância na constituição psíquica que a medida que a criança cresce e interrompe suas brincadeiras, um substituto advém em seu lugar:  a fantasia. Tal consideração, sustenta Freud (ibid.), fundamenta-se ainda no fato da dificuldade humana em renunciar a um prazer experimentado, tendo em vista que procurará de todas as formas um substituto, podendo encontrar prazer não somente no fantasiar, mas também no humor, na escrita, enfim. Diferentemente de um adulto que se envergonha e esconde muitas vezes suas fantasias por serem infantis e proibidas, a criança não oculta sua brincadeira e nem procura esconder seu conteúdo. Ainda sobre os jogos infantis, Freud escreve:
O brincar da criança é determinado por desejos: de fato, por um único desejo – que auxilia o seu desenvolvimento - , o desejo de ser grande e adulto. A criança está sempre brincando ‘de adulto’, imitando em seus jogos aquilo que conhece da vida dos mais velhos. Ela não tem motivos para ocultar seu desejo. (1907: 137)

Oliveira & Fux (2014) assinalam que a primeira definição de Freud sobre o brincar se sustenta no principio do prazer, conservado na fantasia, que se manifesta com mais liberdade quando não articulado ao princípio de realidade, no qual o desejo de ser grande mostra-se como fio condutor.
Contudo, quando levamos em consideração a dimensão do brincar com o desejo de ser grande e o fato de na brincadeira a criança imitar os adultos a sua volta, podemos verificar como elas reproduzem em análise (algumas de formas mais diretas outras nem tanto) através de falas, condutas e com histórias, situações do seu cotidiano e expressam assim as problemáticas de sua estrutura familiar e os impasses no qual se vê incluída. Isso, portanto, coloca em cheque a explicação do brincar unicamente pela via do princípio do prazer e não é a toa que Freud pensou essa atividade infantil também a partir da compulsão a repetição e sua articulação com o traumático.
É, nesse sentido, que em suas observações sobre o brincar, podemos recolher de sua obra o famoso jogo do Fort-Da, no qual se pôde verificar, como observam Oliveira & Fux (ibid.), que a fantasia não é tão evidente para associar esse jogo à dimensão da arte, estando mais ao lado dos “neuróticos de guerra”, do trauma, por assim dizer. Vale lembrar que no texto “Além do principio do prazer”, de 1920, Freud apresenta argumentos que promovem sua reformulação sobre o funcionamento psíquico não mais regulado exclusivamente pelo principio do prazer, tomando os sonhos traumáticos dos neuróticos de guerra, a compulsão a repetição e o brincar como exemplos para sustentar sua nova teorização.
   Freud (1920) extraiu este jogo a partir da observação do brincar de seu neto, constatando que o menino realizava através da brincadeira a repetição de uma experiência vivida como desprazer, que era a ausência de sua mãe. O neto de Freud, então, jogava o carretel e emitia o som de “ôoo..”, que Freud identificou como a palavra alemã Fort (embora, longe, ausente); e quando o puxava de volta, alegremente dizia “aaa..”, identificado como Da (aí, aqui). Na perspectiva freudiana, esse jogo diz respeito a uma brincadeira de desaparecimento e retorno, que faz referência a ausência e presença materna.
Para Freud (ibid.), a ausência da mãe colocava-se para a criança como uma experiência passiva, na qual o menino estava sendo submetido, contudo, com a repetição da experiência no jogo ela assumiu um caráter mais ativo. Nesse sentido, o jogo do Fort-Da reproduziu o que foi tomado como impactante para criança, que no caso do neto de Freud foi ter que suportar a ausência materna sem se queixar. Nas palavras de Freud: “É claro que em suas brincadeiras as crianças repetem tudo o que lhes causou uma grande impressão na vida real, e assim procedendo, ab-reagem a intensidade da impressão, tornando-se por assim dizer, senhoras da situação.” (1920: 27) O fato de ainda assim ser possível verificar uma cota de prazer nos jogos infantis permitiu a Freud concluir que a brincadeira pode estabelecer uma convergência entre o principio do prazer e a compulsão à repetição.

A leitura lacaniana sobre o Fort-Da a partir da compulsão a repetição

Oliveira & Fux (2014) ponderam que na brincadeira do Fort-Da o que se evidencia é que mais do que a busca o prazer – primeira proposição freudiana sobre o brincar –  visto que, na verdade, o aparelho psíquico visa nesse jogo a repetição. Repete-se tendo em vista a dificuldade do neto de Freud em lidar com o real –  o inominável, sem representação, do que não cessa de não se inscrever –  da perda de objeto que resiste a ser simbolizado, tal como a experiência do neurótico de guerra em poder representar o real da própria morte.
A compulsão à repetição é abordada por Lacan no Seminário 11 pela via do Autômaton (via simbólica) e tiquê (via real) e é também no capítulo dedicado a esta discussão que ele retoma o jogo do Fort-Da. Autômaton e Tiquê são termos que Lacan recolhe de Aristóteles para discutir a questão da repetição. Tiquê pode ser traduzido impropriamente, segundo Lacan, como “sorte, fortuna” e autômaton, como “acaso, causalidade”. Ambos são tomados por Aristóteles como “causas acidentais das coisas”, pois para ele existem coisas que acontecem sempre, coisas que acontecem na maioria das vezes e coisas que acontecem excepcionalmente –  sendo estas o estatuto do tiquê e autômaton.
O autômaton é o acaso que diz respeito a algo do retorno, daquilo que se move por si mesmo, no qual não se pode determinar por não haver leis de causa e efeito; não há como predizer. Tem relação com os seres da natureza, com o inanimado, como por exemplo, um cavalo que foge do estábulo e retorna antes que a tempestade chegue. Já o tiquê é tomado como um acaso do registro da sorte, de um encontro feliz ou não, mas que depende da ação humana. Um exemplo disso seria ganhar na loteria. Ser o ganhador é questão de sorte, mas é algo que só acontece se a pessoa jogar. É, portanto, a dimensão do retorno no autômaton, e do encontro no tiquê, que Lacan procura extrair para discutir o tema da repetição, porém concedendo outra dimensão. 
Assim, o ensino lacaniano nos orienta e reforça a tomar o tema repetição não por intermédio da transferência, do acting out – como é possível extrair do texto freudiano “Recordar, repetir e elaborar”, tendo sido essa dimensão privilegiada entre os pós-freudianos –, mas levando em consideração os avanços de Freud a partir de suas formulações sobre o “além do principio do prazer”.  Sobre isso, ele nos diz:
Assim, não há como confundir a repetição nem com o retorno dos signos, nem com a reprodução, ou a modulação pela conduta de uma espécie de rememoração agida. A repetição é algo que, em sua verdadeira natureza, está sempre velado em análise, por causa da identificação da repetição com a transferência na conceitualização dos analistas. Ora, é mesmo esse o ponto a que deve dar distinção. [...] Esta ambiguidade da realidade em causa na transferência, só podemos chegar a desembrulhá-la a partir da função do real na repetição.  (1998 [1964]: 56)

E qual é a função do real na repetição? A função é justamente reiniciar o processo da repetição. O tema da compulsão à repetição e as construções teóricas que a permeiam acompanham o movimento da clínica no sentido que vão do simbólico em direção ao real.  Uma dimensão da noção de repetição traz relação com o simbólico, com o retorno dos signos, de algo que se move por si mesmo, que gira em torno de si mesmo. É, nesse sentido, que Lacan situa o autômaton enquanto a insistência automática da cadeia significante, uma seriação automática, que visa uma satisfação pulsional e, portanto, responde ao princípio do prazer. Todavia, nesse retorno, há sempre um resto e é por isso que ele não cessa. É justamente o resto que causa a repetição, pois o que faz a cadeia significante é girar em torno desse núcleo real, sem representação, inominável. Assim, na repetição há sempre um resto que constitui a causa, sendo por isso que Lacan toma o tiquê como o encontro faltoso que sempre reinicia o processo e instaura novamente a repetição. A partir dessa perspectiva é possível verificar a articulação indissociável entre simbólico e real presente no ser falante, entre inconsciente e pulsão.  Diante disso, a compulsão a repetição é uma forma de nomear o real lacaniano como aquilo que sempre retorna no mesmo lugar.
            De maneira categórica, Lacan traduz a tiquê como “encontro do real” (ibid., ibid, grifo do autor). A origem da função da tiquê – em suas palavras do real como encontro faltoso – pode se extraído primeiramente da noção de trauma em psicanálise. O trauma enquanto algo da ordem do excesso, do inassimilável, do encontro com o real na medida em que o sujeito não consegue representá-lo e se vê ultrapassado pelo evento em sua dimensão de pura ruptura.
            Nesse sentido, podemos com Freud e Lacan inferir que se o funcionamento psíquico fosse regido unicamente pelo principio do prazer, a insistência desprazerosa do trauma não teria lugar.  O trauma só é lembrado porque há uma falha na insistência da repetição significante, no qual localizamos a ordem do real. Nesse sentido, Oliveira & Fux (2014) argumentam que o encontro com o real do trauma extrapola o principio do prazer e por isso insiste em não se inscrever, sendo essa falha na inscrição o ponto mais importante do que Freud abordou sobre a repetição em 1920,  ainda que ele não tenha retirado toda a magnitude a respeito da brincadeira infantil.  “Se o trauma é o inassimilável, ele não pode ser dominado, ele sempre deixa um resto, é e esse resto que motiva a repetição. A repetição, por sua vez, nunca dará conta da prometida vinculação, o que não significa que nada pode ser transcrito.  (ibid.: 263)
            Posto essas considerações, Lacan (1998 [1964]) segue em sua discussão sobre a repetição pelo mesmo víeis freudiano: a partir do sonho traumático e do brincar. Restringindo-nos aqui a questão do brincar, Lacan é preciso ao situar que a formulação de Freud sobre o papel da criança como agente, como ativo, na brincadeira de desparecimento da mãe é um fenômeno secundário. Lembra-nos ainda uma consideração de Wallon (filósofo, médico e psicólogo francês que ficou conhecido por seu trabalho sobre a Psicologia do desenvolvimento infantil) a respeito da relação da criança com o afastamento da mãe. Segundo Wallon, o que a criança vigia não é a porta por onde sua mãe saiu, esperando seu retorno; ela vigia justamente o ponto em que ela o deixou, o vazio que ali se instaurou. (ibid.,ibid.)
Assim, retomando o Fort-Da, Lacan destaca essa função do vazio – se assim, posso dizer – para fazer relação com a sua formulação a respeito do objeto a. Ele nos diz que o carretel está ligado ao neto de Freud por um fio que ele segura e a partir disso ele expressa o que dele se destaca, tal como uma “automutilação”. E complementa:
“Pois o jogo do carretel é a resposta do sujeito àquilo que a ausência da mãe veio criar na fronteira de seu domínio – a borda do berço – isto é, um fosso, em torno do qual ele nada mais tenha senão o jogo do salto. Esse carretel não é a mãe reduzida a uma bolinha [...] é alguma coisinha do sujeito que se destaca embora ainda sendo bem dele, que ele ainda segura. (LACAN, 1998 [1964]: 63)

Sendo assim, Lacan (ibid.) situa que a repetição da brincadeira de jogar e puxar de volta o carretel não deve ser pensada como um modo pelo qual a criança expressa seu desejo de retorno da mãe, visto que um grito, um apelo, atenderia a essa função. O que se repete é a saída da mãe como “causa de uma Spaltung no sujeito” (LACAN, 1998 [1964]: 63). Dizendo de outro modo, o que se repete é a divisão, a separação do sujeito em relação ao Outro. Esse ponto, então, nos remete ao processo de constituição subjetiva. 
 Lacan (1998 [1964]) nos indica que o sujeito surge no campo do Outro, imerso na linguagem e como efeito de duas operações: alienação e separação. A alienação vem demarcar que nenhum falante existe sem a relação com o Outro e que ele inicialmente se situa como objeto, marcando sua existência e seu desejo pela incidência do desejo do Outro sobre ele. Contudo, a separação salienta a tentativa do falante de se “separar”, sair do lugar de objeto e assim, realmente assumir a condição de sujeito desejante, portanto, faltoso. Diante da operação que se expressa na separação, o que temos é uma divisão (do sujeito e do Outro), que tem como resto o objeto a. Sobre o objeto a, Lacan é preciso: “Na medida em que ele é a sobra, por assim dizer, da operação subjetiva, reconhecemos estruturalmente neste resto, por analogia de cálculo, o objeto perdido.” (2005 [1962-63]:179)
Lacan nos apresenta o objeto a enquanto um dejeto, da ordem da queda, que resiste a qualquer “significantização” – portanto, seu caráter real –,  porém com a função constitutiva do sujeito desejante. Precisamente, Lacan no  Seminário 10 (2005 [1962-63]), situa o objeto a enquanto uma parte de nós que é arrancada, ficando aprisionada na máquina e tornando-se irrecuperável; objeto perdido, objeto cedível, nos distintos níveis de corte corporal, que constitui o suporte de toda e qualquer função de causa. Daí podermos situar o objeto a como objeto causa de desejo, que não diz respeito ao objeto visado (que pode ser representado), mas se situa atrás do desejo. Nesse sentido, Lacan nos ensina a ligar o desejo à função de corte e pô-lo numa certa relação de resto, sendo isso que o sustenta e o move.
Para Lacan, a noção de castração está relacionada com o fato de que, em determinado momento, o sujeito é forçado a renunciar a algum gozo. Assim, Lacan pôde situar na segunda virada de seu ensino que na castração o que está em jogo é a separação – uma perda sob a forma de um órgão libido, uma perda de gozo. E ele esclarece que “maneira mais segura de abordar [...] algo perdido é concebê-lo como um pedaço de corpo.” (LACAN, 2005 [1962-63], p. 149. ) Assim, é preciso entregar, como garantia da cadeia significante, um pedaço de corpo.
Essa é, portanto, a função de corte, de objeto cedível, automutilação, que Lacan procurou destacar na experiência do Fort-Da. Sendo assim, podemos mais uma vez assinalar que o jogo do carretel é uma repetição da reposta do sujeito à separação do Outro, que ele experimenta como “alguma coisinha que se destaca” dele próprio e que remete a uma perda de gozo estruturante. Diante disso, nesse jogo, a criança está tentando representar a falta e o primordial nessa brincadeira é o processo de divisão do sujeito aí implicado, sua castração.
Escrever a separação do Outro é impossível tendo em vista seu caráter de encontro com real, contudo, o jogo do carretel teve sua função em permitir que algo pudesse ser transcrito dessa experiência. A esse repeito, Vidal (s.d.) nos lembra sobre o caráter de prematuridade do humano que o coloca numa posição de dependência total frente ao Outro, ao mesmo tempo, que vivência um profundo desamparo. Nesse sentido, quando o neto de Freud brinca com o carretel, algo pode também ser operado nele, passando da posição de objeto dependente a consentir com a perda de objeto, imaginá-lo como faltante. Um objeto, contudo, condensador de gozo e causa de desejo.

Para concluir: A função do brincar na clínica com crianças

Vidal (s.d) pondera que desde Freud o brincar é entendido como um discurso particular no qual a criança sustenta as formações do seu inconsciente – um discurso a decifrar. A brincadeira é, portanto, uma forma inerente de expressão infantil e um instrumento da criança no seu processo de constituição subjetiva, seu modo de inscrição na ordem simbólica e na cultura.  É, nesse sentido, que é possível sustentar que sujeito, efeito da articulação inconsciente, pode se manifestar através dos seus desenhos, sonhos, jogos e brincadeiras. Sendo assim, não é preciso que se demande à criança que ela brinque em análise, pois é uma estrutura que se impõe na clínica como sendo específica a ela.
Não obstante, o jogo do Fort-Da nos ensina que a brincadeira não se relaciona apenas com o principio do prazer, com a fantasia, mas pode servir também como elaboração psíquica para lidar com o que se coloca como impactante para a criança. Nesse caso, a repetição nos jogos infantis emerge como tentativa de assimilação de experiências não prazerorosas e já pode ser um contorno que a criança constrói em torno do que ela viveu. Cohen & Miranda (2012) consideram ainda que o brincar atua como uma das formas de atenuar o sofrimento psíquico na medida em que a brincadeira possibilita diminuir a tensão gerada por situações difíceis que a criança experimenta.
Pode-se, assim dizer que o brincar será, portanto, o recurso privilegiado que a criança terá em análise para expressar e tentar abordar: o traumático; seu mal estar e sofrimento em torno do que vivência; a problemática de sua estrutura familiar; e também suas fantasias e sua ficção a respeito do lugar que ocupa no desejo do Outro – Che vuoi? Que queres? Um recurso, portanto, que fala de sua verdade e do qual, como observa Freud, ela não tentará esconder – ao contrário dos neuróticos que escondem suas fantasias – , cabendo o analista escutá-la.                                                                         
Se o brincar é o recurso privilegiado criança para expressar na clínica seu mal estar, cabe nos perguntar qual será a via utilizada pelo analista para escutar seu sofrimento? É fundamental situarmos que só há uma psicanálise e que Freud só pensou a experiência analítica pela via da palavra. Como bem situa Almeida (2015), não há distinção entre adulto e criança nesse sentido, pois o sujeito de que se trata é um só – o sujeito do inconsciente. E o que melhor articula a natureza dos fenômenos inconscientes? Lacan nos responde, a saber: a noção de significante. É nesse sentido, que Cohen & Miranda sustentam o brincar como um ato surgido como efeito da articulação de significantes do sujeito, no qual a criança:
cria um mundo de fantasia ao qual se submete, mas que também mantêm uma nítida separação entre ela e os fatos da vida. Se os conflitos, os traumas existem, a criança poderá, frente à insatisfação e ao mal estar, usar a fantasia como um modo saber-fazer com o real. (COHEN & MIRANDA,  2012)
Portanto, o jogo e a brincadeira tem papel na análise infantil não enquanto uma técnica, mas como um saber-fazer inerente a toda direção de tratamento na clínica com crianças. Assim, devemos tomar a repetição do brincar como um fazer e abordá-lo como linguagem e discurso determinado pela insistência da cadeia significante, mas também como ato da ordem do encontro com o real – tal como é possível extrair do ensino lacaniano em torno do tema da compulsão à repetição. (VIDAL, s.d.) Nesse sentido, Cohen & Miranda (1912) consideram que o brincar tem sua função na clínica enquanto uma possibilidade de tratamento do real.
Se o real é o que não cessa de não se inscrever e isso que motiva o caminho da repetição nos jogos infantis, o lugar da brincadeira no encontro com o desejo do analista será possibilitar à criança que algo possa ser transcrito dessa experiência com o real, bem como favorecer a elaboração e um saber-fazer com as questões que se colocam em torno sua existência.

REFERÊNCIAS: 

ALMEIDA, Consuelo. A clínica com crianças: alcances e impasses. In: Marraio, Rio de Janeiro, vol. 29, Julho-2015.

COHEN, Ruth & MIRANDA, Cassio. O brincar como modo de tratamento ao real da doença. In: Estudos e Pesquisa em Psicologia. Rio de Janeiro, vol. 13, n 1, 2012. Disponível: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/7932. Acesso em 04/04/2016.

FREUD, Sigmund. Além do princípio de Prazer (1920) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. Rio de janeiro: Imago Ed., 1996. vol. XVIII.

______. Escritos criativos e devaneios (1907). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. Rio de janeiro: Imago Ed., 1996. vol. IX

LACAN, Jacques. Seminário 10 – A angústia (1962-63). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

 ______ Seminário 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

OLIVEIRA, Humberto & FUX, Jacques. Considerações psicanalíticas sobre o jogo de esconder: do puti ao esconde-esconde. In: Agora: estudos da teoria psicanalítica. Rio de Janeiro: Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica IP/UFRJ. Vol. XVII, n° 2, Julho/Dezembro 2014.

VIDAL, Maria Cristina. Questões sobre o brincar. In: Letra Freudiana. Rio de Janeiro, v. 10, n. 9 (s.d.) Disponível: http://www.escolaletrafreudiana.com.br/wp-content/uploads/publicacoes/57/letra9-5231.pdf. Acesso em: 04/04/2016.