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quarta-feira, 26 de agosto de 2020

TEXTO - Uma leitura inaugural sobre a escrita em psicanálise

 Uma leitura inaugural sobre a escrita em psicanálise:

 Considerações sobre “O Seminário sobre a ‘A carta roubada’”

 

Por Flavia Bonfim 



O tema da escrita permitiu a Lacan produzir avanços teóricos no campo psicanalítico. Entretanto, podemos perceber que o percurso lacaniano sobre tal temática não é linear, nem se expressa por meio de uma dimensão desenvolvimentista, estando mais na ordem de uma construção, elaboração. Ao longo de seus seminários, Lacan apresentou diferentes propostas sobre a discussão da escrita em psicanálise, sendo possível enumerar alguns textos pontuais a cada uma delas, a saber: 1) “O Seminário sobre ‘A carta roubada’” e “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” 2) Seminário 9 - A identificação e 3) Lituraterra e Seminário 18 – De um discurso que não fosse do semblante.

Não pretendo aqui percorrer todos esses textos, mas proponho tomar “O Seminário sobre ‘A carta roubada’” como ponto inaugural para uma leitura sobre a escrita, via de discussão para a relação entre letra e significante, mais especificamente sobre o modo de funcionamento deste último. Este seminário de Lacan data de 1956 e remota o conto de Edgar Alan Poe, intitulado “A carta roubada”. O conto de Poe diz de uma carta, que, apesar de não ter seu conteúdo revelado, supõe-se que denuncia os deslizes da Rainha. Tal carta foi roubada/desviada e todos os personagens (Rainha, Rei, Ministro, polícia e investigador Dupin) encontram-se numa trama onde se coloca em jogo a posse dela.

            Ao servir-se do conto, Lacan (1998 c [1956] nos fala de duas cenas: a cena primitiva e a segunda cena, que demarca uma repetição. A primitiva diz da cena onde se encontram a Rainha, o Rei e o Ministro. A Rainha, contando com a desatenção do Rei, deixa a carta à mostra sobre a mesa, virada para baixo. A carta e a desarvoramento da Rainha, porém, não escapam aos olhos do Ministro. Ele rouba a carta; a Rainha o vê, mas não intervém para não despertar a atenção do Rei. Já a segunda cena, passa-se no gabinete do Ministro. Este, para despistar a polícia, deixa a carta roubada sobre o porta-cartas, simulando ser um envelope sem importância. Dupin reconhece que se trata da carta roubada, apodera-se dela e a substitui por uma outra factícia sem que o Ministro perceba. A carta deixada por Dupin, porém, contém uma mensagem para que o Ministro identifique o autor do novo desvio.

            Por meio destas duas cenas, Lacan (ibid.) extrai os três tempos lógicos a partir do qual uma decisão é concluída no momento de um olhar, bem como ele situa os três lugares que a carta atribui aos personagens do conto. O primeiro é um olhar que nada vê – olhar do Rei e da polícia. Já segundo é olhar que vê que o primeiro nada vê e se engana por ver encoberto o que ele oculta – olhar da Rainha e do Ministro. O terceiro é olhar que vê que os dois deixaram descoberto o que era para esconder, podendo assim, possuir ele próprio a carta – olhar do Ministro e do Dupin.

Com isso, Lacan pôde destacar como tais posições se revezam nos três tempos, apontando, assim para o deslocamento da repetição e concluindo que “seu deslocamento é determinado pelo lugar que vem a ocupar em seu trio esse significante puro que é a carta roubada. É isso que para nós o confirmará como automatismo de repetição.” (ibid., p. 18) Este automatismo, diz Lacan (ibid.), extrai seu princípio da insistência da cadeia significante. Sendo assim, o conto vem apontar para aquilo que está em causa nas formações do inconsciente e é, por isso, que Lacan retém o texto “A carta roubada” na medida em que pode abordar os efeitos do funcionamento de uma carta onde está implicada a incidência do significante.

Lacan refere-se à carta como letra, utilizando-se da própria língua francesa para apontar tal consideração. Vale lembrar que “lettre” em francês designa tanto carta quanto letra. Desta carta, pode-se extrair efeitos (repetição, endereçamento e submissão) que advém não do seu conteúdo, mas dela enquanto significante – sendo justamente isso que Lacan procura pontuar. Mais precisamente, ela funciona por que nada se sabe do seu conteúdo. Daí, a noção de carta/letra. Trata- se, nesse sentido, da precedência do significante sobre o significado. Lacan nos diz que “a singularidade da carta/letra, que, como indica o título, é o verdadeiro sujeito do conto: é por poder sofrer um desvio que ela tem um trajeto que lhe é próprio. Traço onde se afirma, aqui, a incidência de significante.” (ibid., p. 33, grifo do autor)

A partir de tais colocações, podemos perceber que Lacan, mesmo se utilizando do recurso letra, não faz distinção entre ela e o significante. “Mas essa letra, como se há de tomá-la aqui? Muito simplesmente ao pé da letra. Designamos por letra este suporte material que o discurso concreto toma emprestado da linguagem.” (LACAN, 1998 a, p. 498) Isto é: neste momento do percurso lacaniano, a letra funciona como suporte material da linguagem, necessário ao jogo significante, mas não se diferencia deste último, sendo ela apresentada neste seminário para especificar o que é da ordem significante. É enquanto velada pelo Ministro que a carta/letra se torna significante. Sobre isso, Ana Costa escreve que “O “desvio” da carta/letra é o que lhe confere o caráter significante, constituindo o caminho da repetição. Nesse ponto pode-se tomar o envelope da carta, revirado pelo ministro, como esse ato de velamento do corpo, próprio ao significante.” (2006, p. 12)

Convém assinalar que a letra, nesse seminário, está mais do lado do simbólico do que do real - como será, anos depois, a proposta lacaniana em “Lituraterra” e Seminário 18. Para acompanharmos essa modificação, convém não ignorarmos o fato de que o ensino de Lacan, em seu início, tem como ponto de partida sua confiança no simbólico e que somente mais tarde assistimos um cercamento mais rigoroso da categoria real, para ao seu final propor uma equivalência entre os três registros.  Tanto em Lituraterra quando em De um discurso que não fosse do semblante, Lacan mais uma vez recorre ao conto da carta roubada, não para reformular nem contradizer as colocações que havia apresentado até então, mas para introduzir um a mais, produzindo, assim, um salto teórico. Ele nos apresenta a letra nesses textos como litoral, como aquilo que cai do sitio do sujeito na linguagem e faz efeito sobre o corpo. A letra não está mais situada do lado do significante, pelo contrário, ela faz litoral entre “campos estrangeiros”. São eles: saber e gozo, simbólico e real. Mais uma vez recorrendo às considerações de Costa (2008), a psicanalista nos escreve que, no texto “Lituraterra”, Lacan faz um aproximação entre letra e gozo, situando isso por meio de dois pontos: letra como produção de resto (deslizamento de letter para litter, letra/carta para lixo) e como buraco no saber.

Realizada as devidas considerações, retomemos ao texto “O seminário sobre ‘A carta roubada’”. Além do efeito de repetição, temos o aspecto do endereçamento que o conto nos coloca. Lacan lança-nos uma questão a esse respeito, a saber: “Então, a carta/letra sobre a qual quem a enviou ainda conserva direitos não pertenceria àquele a quem se dirige? Ou será que este último nunca foi o verdadeiro destinatário?” (1998 c [1958], p. 30) A carta é endereçada à Rainha, porém, tornou-se inerente a ela o desvio, estar à mostra para ocultar-se, ser procurada e achada - sendo precisamente isto o aspecto de significante em seu endereçamento. É, portanto, uma carta que sempre chega ao seu destino, observa Lacan (ibid.), todavia, seu destino não é naquele a quem ela foi endereçada, mas no emissor que recebe do receptor sua própria mensagem sob forma invertida, naquele que a remete a partir do Outro. Isso nos permite dizer, com Lacan, que o endereçamento é ao sujeito, na medida em que este não é aquele que fala, mas é exatamente aquele que é falado na cadeia significante, aquele que é constituído pelo Outro. Relançando-se sobre “A carta roubada” em momento mais avançado do seu ensino, Lacan ratifica tal consideração ao dizer que “não é a mulher cujo endereço a carta satisfaz, ao chegar ao seu destino, mas sim ao sujeito, ou seja, para redefini-lo” (2009 [1971], p.125)

Para encerrar, tratemos do efeito da submissão, que poderia ser traduzido como: “a carta feminiza”. Nas palavras de Lacan: “ela feminiza aqueles que revelam estar numa certa posição – a de estarem à sombra dela.” (2009 [1971], p.125) Deter a carta implica estar submetido a ela, ficar a sua sombra. A sombra, por sua vez, refere-se ao feminino, logo, ter é carta é portar seu enigma.

A carta - melhor caberia dizer que nesse momento do ensino de Lacan, a letra – está do lado do falo, do significante. A carta foi falicizada. Quem a detém, acha que tem o poder, mas não tem. Pelo contrário, fica numa posição de submissão, de objeto. Com isso, suponho que poderíamos dizer que o falo entra nesse circuito na medida em que ele, em sua vertente imaginária é, ao mesmo tempo, o que aponta para o poder, o que faz destaque, o que produz luz; mas, enquanto significante, produz sombra, velamento. Ou seja, o falo entra no circuito a partir do ato que cada personagem faz da carta/letra.

O falo, por sua vez, nos aponta Lacan (1998 b [1958]), só pode exercer seu papel enquanto velado, apontando, assim, para seu estatuto de significante. Do mesmo modo, podemos dizer sobres os efeitos da carta, que só existem porque ela foi tomada como significante. Quem tem a carta, oculta não ter. Talvez aqui pudéssemos aproximar a noção de presença e ausência evocada pela dimensão significante, conferida no jogo do For-Da. Por outro lado, a carta só tem valor na medida em que seu conteúdo não é revelado. Um outro modo de dizer é que: quem está com a carta, não pode fazer uso dela. É somente enquanto significante que ela funciona.

Quanto ao efeito de submissão, me ocorre o texto “A significação do falo” onde Lacan nos diz que o fato da feminilidade encontrar seu refúgio na máscara fálica “tem a curiosa conseqüência de fazer com que, no ser humano a própria ostentação viril pareça feminina.” (1998 b [1958], p. 702) Ostenta-se ter o poder, mas a posição é de objeto em relação ao funcionamento da carta. “Pois, ao entrar no jogo como aquele que esconde, é do papel da Rainha que ele tem que revestir, inclusive nos atributos da mulher e da sombra, tão propícios ao ato de esconder.” (LACAN, 1998 [1956], p. 35) Não é sem importância, como lembra Lacan (1998 [1956]), que para disfarçar a carta, o Ministro a endereça si mesmo e no envelope pode-se identificar uma letra de mulher.  Nesse sentido, finalizo com o comentário de Costa:

Esses são os efeitos que o autor primeiro isola da relação ao significante. A perda de um referente natural/universal implica uma perda do lado da significação. Deste modo, o sujeito será produzido numa relação às leis da linguagem, sendo determinado por elas e, por essa razão, advém daí sua condição de feminização, dessa submissão a essas leis. (2008, p. 46)                                                                                                                                                                                                    

 

REFERÊNCIAS:

COSTA, Ana. Conceitos da psicanálise e fundação de um campo. In: Fundamentos da psicanálise – Revista da Associação psicanalítica de Porto Alegre. - Porto Alegre: APPOA, n° 31, 2006. 9-13 p.

_____________Relações entre letra e escrita nas produções em psicanálise. In: Estilos da Clínica, 2008, Vol. XIII, no 24, 40-53 p.

 

LACAN, Jacques. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998 a. 496 -533 p.

_______________A significação do falo. (1958) In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998 b. 692 -703 p.

_______________ Lituraterra. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2003. 15 – 25 p.

_______________ O Seminário sobre “A carta roubada”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998 b. 13-66 p.

_______________ Seminário 18 – De um discurso que não fosse do semblante (1971). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.

 

 

domingo, 23 de agosto de 2020

TEXTO: HISTERIA, FEMINILIDADE E NÃO-TODO

 

Histeria, feminilidade e não-todo


 

 

POR fLAVIA bONFIM

 

Aproximar-se da histeria é, de certa forma, aproximar-se da constituição da psicanálise, já que foi através do encontro com o sofrimento histérico que Freud pôde formular a teoria e clínica psicanalítica na medida em que este interrogava o saber médico. A delimitação da etiologia psíquica da histeria foi paralela às mais importantes descobertas da psicanálise (inconsciente, recalque,  identificação, fantasia, transferência). E como se não bastasse, toda entrada em análise pressupõe a histerização do sujeito – momento no qual o sintoma é transformado em enigma e passa a representar a divisão do sujeito. A histerização implica que o sujeito se dirija ao psicanalista com uma pergunta a respeito de seu sintoma: “O que isso quer dizer?” Essa é a característica do sujeito histérico, que pressiona o mestre (S1) a produzir um saber (S2) sobre seu sintoma.

 Na atualidade, porém, já não é possível encontrar com tanta freqüência os casos clássicos de histeria como os relatados na obra freudiana. Por outro lado, não é possível dizer que eles não existem mais. Encontramos com mais constância, sim, novas roupagens para os sintomas corporais tão comuns na histeria, porém aderidos aos significantes da ciência, como por exemplo, os casos de anorexia e a bulimia, que como os sintomas conversivos trazem uma mensagem escrita no corpo endereçada ao Outro.

Seja na época de Freud, seja contemporaneidade, nos confrontamos com uma constatação fenomenológica: há mais histéricas do que histéricos. Isso não é novidade alguma. Esta constatação por si só não nos revela muita coisa, mas por ter se tornado tão evidente não provoca questionamentos. Por sustentar que este dado não tem nada de óbvio, introduzo uma pergunta bastante inicial: “Qual a relação entre feminilidade e histeria?” É justamente esta questão que tentarei trabalhar neste artigo. Não proponho, aqui, confundir a posição da mulher com a da histérica – equívoco sugerido na própria etimologia da palavra “histeria”[1] mas discutir como o não-todo feminino pode vir a se articular com a estrutura da neurose histérica.

É em sua segunda clínica, precisamente, nos anos 1972-73, com o texto “O aturdito” e o Seminário 20 – Mais, ainda, que temos acesso a uma inovadora constatação expressa pelo além do Édipo que pôde articular de modo mais preciso a problemática que coloca dos lados das mulheres. Para estas, o falo não é capaz de responder a tudo que é da ordem do gozo e de sua posição sexual. O falo, durante todo ensino lacaniano, foi tomado como o único significante da sexuação, porém, é no último Lacan que se revelam as conseqüências desse fato para as mulheres. Havendo um significante da sexuação, ao nível do discurso inconsciente, não existe relação possível entre dois sexos opostos. Dizendo de outro modo, para o inconsciente, o Outro sexuado não existe, visto que  não há um significante que fundamente o ser da mulher como há para o homem.

Avançando nesta discussão, Pommier (1997) articula que a mulher encarna a falta sob dois pontos de vista: de um lado, ao nível imaginário, na medida em que ela é o que não tem (apesar de nada faltar); e por outro, ao nível simbólico, visto que “mulher” é uma palavra cuja referência é faltosa. Tomando o nível imaginário, o sexo da mulher fornece apenas uma ausência, já no do homem encontramos aí uma prevalência gestaltica fálica. Diferentemente do homem, o sexo da mulher tende a ser percebido como um buraco, um vazio – o que remete ao sujeito ao impossível de simbolizar. É nesse sentido, que Lacan afirma seu famoso aforismo: “A Mulher não existe”. Existe a palavra “mulher”, mas ela não remete a nada que seja próprio ao feminino. A “mulher não tem identificação, mas sim identificações, que exprimem a falta de consistência do traço identificatório e revelam a impossibilidade de definir um modelo feminino.” (idid, p. 33) E diante de um buraco ao nível simbólico, a feminilidade surge como uma “máscara”[2] que recobre o vazio de nomeação. 

Frente a essa vazio de nomeação, o corpo da outra mulher é tomado como suporte de sua identificação imaginária, na ausência de um reconhecimento simbólico.  Eis porque podemos encontrar um certo fascínio e curiosidade que as mulheres tem umas nas outras, buscando assim encontrar  um traço da feminilidade que lhe falta (TEIXEIRA, 1991) Ao nível simbólico, o sexo da mulher falta material, sendo neste ponto onde o obstáculo emerge na realização da identificação essencial à constituição da sexualidade do sujeito. Assim, a mulher é obrigada a tomar a imagem do outro sexo como base de sua identificação, na medida em que é impossível para a mãe fornecer qualquer traço único à sua filha.

Em outros termos, Lacan, já em 1956, escreveu que a realização do sexo da mulher não se organiza de forma simétrica à do homem. Ou seja, a mulher não se identifica com a mãe, como se poderia supor, mas com o pai - o que lhe destina um desvio. Tomando o caso Dora, Lacan (2002 b) assinala que ela ao se interrogar sobre “o que é uma mulher?”, tenta simbolizar o órgão feminino como tal e como não consegue identifica-se com o homem (supostamente portador do falo) como uma via de aproximar-se dessa definição que lhe escapa. Lembremos que a identificação é um mecanismo muito comum na histeria. Por outro lado, Lacan considera:

Mas a desvantagem em que se acha a mulher quanto ao acesso à identificação de seu próprio sexo quanto a sexualização como tal, na histeria transforma-se numa vantagem, graças a sua identificação imaginária com o pai, que lhe é perfeitamente acessível, em virtude especialmente de sua posição na composição do Édipo. (2002 a, p. 197)

 

Lacan (ibid.) comenta que quando a mulher é introduzida na histeria, sua posição passa a ter uma estabilidade particular, em função da simplicidade dessa estrutura. Isso quer dizer que  fica mais fácil para ela abordar sua questão pelo percurso mais curto, a saber: apaziguando-a com a identificação com o pai. A histeria mostra-se, portanto, como uma via pela qual a mulher tenta estruturar a complexidade de sua realização edípica.

Para articular mais decisivamente a relação entre feminilidade e histeria, tomo neste momento a discussão lacaniana a respeito da lógica do não-todo. No Seminário 20,  Lacan (1985) nos fala sobre dois tipos de gozo e sobre a diferenciação entre a posição feminina e a masculina, que podemos encontrar no quadro sobre as fórmulas quânticas da sexuação:


 


A coluna esquerda descreve a posição masculina e o lado oposto, a feminina. Não há aqui, nenhuma referência à biologia, de modo que esta divisão não corresponde a distinção anatômica entre os sexos. Lacan busca destacar, assim, a posição subjetiva de cada sexo determinada no próprio discurso do sujeito. Em qualquer dos lados, podemos encontrar que  a função Φx tem relação com a sexualidade e esta provém da função fálica. Localizar-se de um lado ou de outro depende da maneira como o sujeito está assujeitado a essa função. O “x” designa o sujeito.

Eis as inscrições do lado masculino:

  

 
 Existe um “x”, um sujeito, para quem a função Φx não funciona, ou seja, existe um homem que se inscreve contra a castração.


   Para todo homem há a inscrição da função fálica, exceto por um sujeito pelo qual a função Φx é negada, ou seja,  do pai da horda primitiva – o homem que podia gozar de todas as mulheres.  Isto implica que todo homem e tudo que estrutura seu gozo está submetido a castração.

            A seguir as fórmulas do lado da mulher:

 Não existe mulher para quem a função fálica não funcione, não há mulher que não esteja assujeitada à castração.

  Para não-todo sujeito é devemos considerar que a função fálica funcione, isto é, a mulher é não-toda referida à castração e nem tudo em uma mulher está submetido a lei do significante.

           Sobre essa parte do quadro correspondente ao lado feminino, Lacan comenta que “se ele [ser falante] se inscreve nela, não permitirá nenhuma universalidade, será não-todo, no que tem a opção de colocar na Φx ou bem de não estar nela.” (1985, p. 107)

            Segundo André (1998),

 indica que não existe do lado feminino nenhuma figura fundadora de um conjunto de mulheres visto que nenhuma mulher faz exceção à regra, situando-se fora da castração. Diante disso, cabe aos sujeitos que se situam desse lado, escolher entre recusar ou aceitar a falta de fundamento. Se recusam, acabam por ter que se colocar do lado masculino, encontrando, assim, uma identidade. Não é essa a escolha comum na histeria?   Por outro lado, aceitar a falta de fundamento é a saída que Lacan propõe para o impasse do Édipo feminino posto na teoria freudiana. Escolher essa opção é se defrontar com a constatação de que “A Mulher não existe” e não pode ser incluída em um conjunto fechado, mas devem ser contadas uma a uma. Assim, a mulher precisa se inventar. Dizendo de outro modo, as mulheres não fazem Um como os homens, mas permanecem em sua infinitude. Aqui, cabe o seguinte comentário de Pommier:

o gozo feminino se separa do Nome. Uma mulher, como ser falante, está separada da feminilidade que encarna. A cisão que experimenta impõe a ela um escolha entre sua identidade e seu gozo. Nesse vel, a primeira não qualifica a feminilidade que, nesse aspecto, está sob a mesma égipe que a de um homem. O segundo supõe a perda, ao menos momentânea, da primeira. Se busca o gozo que lhe é próprio, perde sua identidade e seu nome.  (1997, p. 35)

 

 Outro ponto a destacar diz respeito ao modo como a castração se coloca para a mulher, ou seja, dividindo-a, ao contrário do que acontece no ser masculino que o unifica sob o significante “homem”. Dessa maneira, uma mulher sente que uma parte de si está submetida ao gozo fálico (gozo sexual, determinado pelo significante falo), enquanto a outra se situa no gozo Outro, no gozo do corpo (gozo que escapa ao domínio significante e por isso situa-se fora-da-linguagem). Convém ressaltar ainda nesse ponto que o gozo Outro não é um traço particular do feminino e o gozo fálico, do masculino; mas o que está em jogo é modo como esses dois tipos se gozo se encontram na mulher.

            Por o gozo Outro está fora da linguagem, nenhuma palavra pode ser dita sobre ele, logo, nada se sabe a seu respeito. Isto pode sugerir, então, que a mulher desconhece aquele que a faz não-toda. Lacan (1985) escreve que o que a mulher sabe é o fato de que ela experimenta esse gozo. Sobre esse gozo do qual não se pode emitir nenhuma palavra, Lacan o compara aos místicos ao afirmar que “o testemunho essencial dos místicos é justamente o de dizer que eles experimentam, mas não sabem nada dele.” (ibid, p. 103)

O gozo feminino não está situado no mesmo registro que o do homem. Apesar de não poder ser situado no mesmo registro, é a partir do gozo fálico que podemos supor um outro gozo. O gozo fálico, por está articulado ao significante, nos faz supor que há uma “outra coisa”, um “mais-além”, na medida em que a função do significante é evocar outra coisa além do que ele diz. É uma espécie de gozo não-todo referido ao falo, que, no entanto, não escapa de está de alguma maneira nele. Lacan comenta que “Não é porque ela [a mulher] é não-toda na função fálica que ela deixa de estar nela de todo. Ela não está lá de todo. Ela está lá à toda. Mas há algo mais” (1985, p. 100)

Cabe aqui sinalizar o modo como Lacan se refere ao gozo feminino, ou seja, como um gozo suplementar - sendo rigoroso no uso dessa palavra. Ele escreve: “eu disse suplementar. Se eu estivesse dito complementar, aonde é que estaríamos! Recairíamos no todo.” (LACAN, 1985, p. 99, grifo do autor) De maneira simplista, podemos, através do significado do dicionário dessas palavras que Lacan põe em destaque, perceber a sutileza de seu enunciado. Suplemento significa a parte que se adiciona a um todo para ampliá-lo e complemento é aquilo que completa, formando um todo. Lacan, enfatiza na sentença acima, aquilo que é fundamental sobre a discussão a respeito do gozo feminino: a mulher é não-toda e seu gozo está situado num “além”, ultrapassa o gozo fálico.

Agora, voltemos nossa atenção para a parte inferior do quadro da sexuação exposto anteriormente. Lacan (1985) diz que essa parte é chamada impropriamente de humanidade, no que ela se repartiria em identificações sexuais. Em seguida, propõe o modo como essas partes se relacionam, ou melhor, não se relacionam. Do lado do homem, ele inscreveu o $ e o Φ. Na seta que sai do lado masculino em direção ao feminino, percebemos que a ligação de $ é com o objeto “a”, propondo que o homem só pode atingir seu parceiro sexual por intermédio deste ser a causa de seu desejo. Ou seja, para o homem, a relação com a mulher se reduz à fantasia e é por meio disto que ela recebe o estatuto de Outro para ele.

Do lado da mulher, Lacan (ibid.) afirma que a partir do momento em que ela é não-toda, o artigo “A” tem que está barrado. A inscrição também nos mostra que A mulher relaciona-se com o Outro – S(A), enquanto aquilo que falta como significante no Outro e com Φ mediante o que o homem pode encarnar para ela, sem, contudo, se ocupar inteiramente com ele. Disso extraímos que a mulher tem gozo é não-todo ocupado no homem, situando para além dele seu verdadeiro parceiro - S(A). Todavia, conectar-se ao homem é a condição para ela ter acesso ao gozo não-todo.  Nesse sentido, André comenta “Que a parte propriamente feminina do gozo se articule a S(A) mais-além da contribuição fálica que faz do parceiro, quer dizer que uma mulher goza dela mesma enquanto Outra a ela mesma.” (1998, p. 224)

Realizada tais considerações, podemos agora dar um certo encaminhamento a pergunta posta na introdução deste trabalho, correlacionando neurose histérica e feminilidade. O neurótico é aquele que aceitou o fato de que o falo é o único significante sexual e que há, nesse sentido, conforme já mencionamos, duas possibilidades de inscrição na função fálica: todo fálico ou não-todo fálico. Referindo-se a posição feminina, Morel salienta que: “O não-todo [...] não é a existência de alguma coisa não-fálica. É alguma coisa muito mais indeterminada do que isso.” (1997, p. 104) Por ser indeterminada, tem algo de desconfortável, arriscado. Onde me ancorar? – pode-se perguntar uma mulher. Morel (ibid.) diz, então, que é menos arriscado dirigir-se ao gozo fálico. Ou seja, “é mais tranqüilizador se identificar com o homem do que ser seu objeto.” (MOREL, 1997, p. 111) É isto que faz a histérica ao “bancar um homem” e recusar ser situada no lugar de objeto do desejo dele.

“Bancar o homem” não quer dizer ter aparência de homem, mas faz referência ao nível inconsciente do desejo, numa tentativa de cercar a feminilidade à maneira masculina. O desejo da histérica, Lacan afirma, que “Freud o ordena como desejo de ter um desejo insatisfeito.” ( 1998 c, p. 627) Já a identificação na histeria, esta sempre se dá ao nível do desejo do outro. Se tomarmos um caso paradigmático a esta discussão, a saber: o sonho da Bela Açogueira, podemos articular um pouco mais a questão do desejo e da identificação, mesmo que rapidamente. Lacan nos mostra que sonho introduz, entre outras coisas, um questionamento: “como pode uma outra [amiga] ser amada [...] por um homem [marido] que não pode se satisfazer com ela [...]? Eis a questão esclarecida, que é, em termos muito gerais, a identificação histérica.” (LACAN, 1998 c, p. 632) De outro modo, é possível dizer que este sonho coloca em jogo a identificação dita histérica na medida em que a sonhadora se identifica com o homem, mais precisamente com o significante do desejo, todavia, não se trata de um desejo qualquer, mas um desejo que não pode ser jamais satisfeito.

Outro ponto a destacar a respeito do não-todo, fala da conexão da mulher com homem. Morel (1997) propõe que a mulher pode se relacionar com o homem de duas maneiras. Uma maneira é servir-se dele para aceder ao gozo Outro, aceitando ser objeto a de um homem – o que lhe permitiria ser Outro para ele. Isso seria fundamentalmente a posição feminina. O outro modo de se relacionar com o homem é identificar-se com ele, recusando ser seu objeto. Este é o modo característico na histeria. Tal posicionamento não permite ser Outro no gozo, mas impõe uma questão de ser saber Outro. Entretanto, Lacan adverte que “não há necessidade de ser saber Outro para sê-lo”.(1985, p. 114)  Morel (1997) aponta que são dois modos de se relacionar com o homem muito próximos um do outro.

Sobre essa proximidade, Fuentes (2004) argumenta que a mulher, sem um significante para representá-la, acaba se refugiando numa máscara para ser desejada por um homem, mostrando-se como aquilo que lhe falta. Assim, Fuentes afirma: “para ser objeto de um homem, uma mulher o será na condição de semblante.” (ibid., p. 53) Disso, tiramos como conseqüência que, nas mulheres, a instância do semblante é acentuada tendo em vista seu lugar no casal sexual de fazer desejar, que implica em moldar-se as condições de desejo do homem. O semblante, por ser uma máscara, pode ter várias faces. Mas o impressionante é que a face fálica se apresente como próprio da mascarada feminina. “O fato de a feminilidade encontrar seu refúgio nessa máscara, em virtude da Verdrangung inerente a marca fálica do desejo, tem a curiosa conseqüência de fazer com, no ser humano, a própria ostentação viril pareça feminina.” (LACAN, 1998 a, p. 702)

Todavia, de tanto se apresentar como uma mulher fálica, ela pode acreditar ser possível saturar a falta que a faz mulher, não-toda. A histérica faz isso, porém, quanto mais ela se aliena no lugar do falo, mais distante permanecerá do gozo que lhe é próprio, que não complementa, mas ultrapassa o gozo fálico. Desse modo, conclui Fuentes: “quanto mais uma mulher crê no seu semblante, fazendo dele um verdadeiro refúgio para a feminilidade, mais ela sacrifica nela o que há de feminino. Eis o desafio para mulher, já que mascarar-se é a condição para ser desejada por um homem”.(2004, p. 55)

Por último, encerro fazendo referência à distinção entre mulher e histeria apresentada por Soler. A autora é altamente precisa nesse sentido, contudo, é justamente onde ela situa a distinção que é possível verificar o ponto de encontro. mulher , diz Soler (2005), “quer gozar”, já a histérica “quer ser” – ser o que falta ao Outro. O querer gozar da mulher é também acompanhado pelo querer “fazer gozar” na medida em que o gozo do parceiro vem no lugar de causa do desejo dela. A histérica se esquiva de ser objeto de gozo, preferindo estar situada como objeto precioso que sustenta o desejo e o amor. Sua oferta, portanto, é de “fazer desejar”. Por outro lado, considera Soler, o “fazer gozar” da mulher não exclui o “fazer desejar” – que, conforme já assinalamos, requer mascarar-se - sendo isto que ela acredita ser “a acentuação do núcleo histérico nas mulheres”. (2005, p. 55)

 

Referências Bibliográficas:

 

ANDRE, S. O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

 

FUENTES, M. O exílio d mulher. In: Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. n°31, São Paulo: Eliota,  Set./2001.  52-55 p.

 

GUIMARÃES, R. Dicionário da Mitologia grega. São Paulo: Editora Cultrix, 1996.  300 – 301 p.

 

LACAN, J. A direção do tratamentos e os princípios de seu poder. In: Escritos Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998 c., p. 627

 

______. A questão histérica. In: Seminário 3 - As psicoses. 2. ed. rev Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002 a. 195 – 197 p.

 

______. A questão histérica (II): O que é ser uma mulher?. In: Seminário 3 - As psicoses. 2. ed. rev. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2002 b. 198 – 208 p.

 

______.  O aturdito. In: Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. 448 – 497 p.

 

______.  Seminário 20 – Mais, ainda. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

 

MOREL, Genéniève. Sexuação, Gozo e Identificação. In: Latusa – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-Rio), n° 1. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1997.  89 – 112 p.

 

POMMIER, Gerard. A exceção feminina: os impasses do gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. 26 – 44 ; 64 -76 p.

 

RIVIERE, Joan. A feminilidade como mascarada (1929). In: Pyquê, São Paulo: Ano IX, n° 16, 13-24 p., jul./dez. 2005.

 

SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005. 245 p.

TEIXEIRA, Marcus. A feminilidade na Psicanálise. In:  A feminilidade na psicanálise e outros ensaios. Salvador: Álgama, 1991, v. 1.  11 – 54 p.

           

            Notas:



[1] Histeria é um termo de origem grega (hystera = útero) e da Grécia Antiga até o século XVII ficou vinculada a uma condição médica peculiar às mulheres. Hipócrates defendia a idéia que o útero, ao se movimentar por si próprio dentro do corpo, provocava reações histéricas tais como sufocação, afonia, epilepsia e topor.

 

[2] Joan Riviere já havia nos apontado semelhante consideração, ao afirmar que não há diferença entre feminilidade genuína e mascarada. Apesar de alguns equívocos teóricos cometidos por esta psicanalista pós-freudiana, não podemos deixar reconhecer o valor de tal apontamento.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Texto: Por que só há raças de discurso: desafios à democracia

 



Por que só há raças de discurso: desafios à democracia*

Por Jésus Santiago                                        



Para a psicanálise, as raças constituem um mito criado por diversas manifestações de discursos dominantes. O que existe é "o racismo dos discursos em ação"1, portanto, o que há das raças resulta de pensamentos e práticas racistas. Raça e racismo são inseparáveis, ou seja, o mito de raças diferentes é produto do racismo que emergiu, no início do século XVIII, com repercussões no discurso da ciência. Assim, o paradigma de cunho racial faz-se presente, por exemplo, em iniciativas de naturalistas – entre outros, como Carl von Linné (1707-1778) – que buscavam um princípio de classificação de grupos de homens e de animais em categorias, segundo critérios biológicos e morfológicos. Os problemas acarretados por esse esforço de classificação agravam-se com o advento do evolucionismo darwinista, no século XIX, quando os critérios da antropologia física dão lugar a critérios biológicos e genéticos. Reforça-se, então, no contexto do saber, a ideia de uma hierarquia das raças, como resultado de uma presumível evolução do patrimônio hereditário modificado por adaptação ou por seleção natural.

Paradoxalmente, o próprio avanço da ciência acaba por demonstrar o equívoco desses princípios classificatórios e pode-se concluir que sua postulação carrega uma nítida ideologia política de viés racista. Os desenvolvimentos recentes da genética molecular e o sequenciamento do genoma humano permitem um exame detalhado da correlação entre a variação genômica, ancestralidade biogeográfica e aparência física e revelam que as designações empregadas para distinguir as “raças” – amarela, negra, branca, vermelha – não têm qualquer base científica demonstrável. Segundo Sérgio Pena, geneticista brasileiro, por mais que possa parecer fácil distinguir fenotipicamente um europeu de um africano ou de um asiático, tal facilidade desaparece por completo quando se procuram evidências de diferenças “raciais” no genoma humano2.

Jacques Lacan, psicanalista francês, nos anos 60, sob os auspícios do instrumental conceitual e clínico da psicanálise, tem a ousadia de profetizar o recrudescimento do racismo3 no momento em que os novos ares dos tempos sopram mudanças do mundo – transformação da família, fim do patriarcado e revolução sexual. Para surpresa de todos, Lacan prognostica a escalada do racismo em função do que, na época, ainda não se denominava globalização. Desde então, a atividade clínica do psicanalista destaca sinais evidentes de que as diferenças raciais se tornam insuportáveis, sobretudo quando emergem e se misturam em um mesmo espaço de convivência. Quem não reconhece teor racista, por exemplo, no comentário de um brasileiro que, diante da massificação do transporte aéreo, afirma que “os aeroportos viraram rodoviária”?

Pode-se facilmente, neste ponto, deduzir o princípio básico do racismo: se o Outro não goza da mesma maneira, o Outro deve ser repelido e rechaçado. Eis também o que está na raiz da depreciação e difamação de mulheres e que se pode nomear como racismo antifeminino. A perspectiva contemporânea do capitalismo de integração das nações em conjuntos mais amplos, que autorizavam os mercados comuns, pode colocar em risco as diversas civilizações. A imposição de formas padronizadas e homogeneizadas de consumo ameaça a existência de modos singulares de gozo, especialmente, nos dias de hoje, em que não se goza da mesma maneira em relação a estilos de vida, crenças religiosas, Deus e ao próprio corpo.

A psicanálise antevê a necessidade de uma "terapêutica de massa"4 que se traduz na promoção de discursos públicos que ofereçam outras perspectivas a sintomas do ódio implacável ao Outro. Tais discursos, inspirados na psicanálise, podem contribuir para tolher a cristalização de sintomas da civilização que, no caso do racismo, tem sua raiz no corpo. Se certo número de discursos produz identificações que convergem para o obscurantismo conservador, a defesa intransigente da tradição patriarcal, a hostilidade à vida civilizada, enfim, a morte do Outro, não há razão alguma para a existência de outros discursos que se oponham à solidificação de tais identificações e que se transformam em ações dissolventes e corrosivas delas.

Nosso ponto de vista é de que a questão do racismo constitui um dos maiores desafios para a consolidação da democracia que se deseja para o Brasil. Ao contrário do que se pode pensar, o episódio recente protagonizado pelo jornalista William Waack demonstra que o racismo no país não é um fato isolado e tampouco se expressa apenas por manifestações eventuais e insidiosas mediante xingamentos e insultos. Se um representante renomado da imprensa nacional profere tal fala racista, isso ocorre porque há algo da discriminação racial que integra a própria estrutura desigual e antidemocrática da sociedade brasileira e porque o Brasil está longe de ser o país da cordialidade e dos afetos.

Nesse sentido, o sintoma da segregação racial deve ser considerado exemplo vivo de que a democracia não se confunde com o Estado de direito. Uma sociedade restrita a significantes-mestres da legalidade e da norma jurídica é incapaz de se contrapor aos inimigos do gênero humano e nela o racismo se revela, ao longo dos tempos, uma arma privilegiada. Insistimos, por consequência, que a democracia não se confunde com o juridicismo e seu vigor exige uma conversação assídua sobre as grandes direções necessárias à vida civilizada. Enfim, a democracia apresenta-se no lugar de uma causa que coloca cada cidadão que dela participa como sujeito do desejo e também do desejo de democracia que, certamente, se situa sempre fora da norma. Assim sendo, a realização do Fórum Por que só há raças de discurso: desafios à democracia se constituirá ocasião ímpar para se levar adiante a discussão sobre como lidar com o sintoma do racismo, favorecendo a presença de discursos públicos que busquem orientações e valores civilizatórios compatíveis com a vida.


*Artigo original publicado na Revista Correio Express, n. 2 - março de 2018. Link:

https://www.ebp.org.br/correio_express/extra001/texto_Jesus%20Santiago.html

LACAN, J. “O aturdito”.In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 463.

2 PENA, S. D. J. “Desinventando as raças”. In: LANDIM, Mª I.; MOREIRA, C.R. Charles Darwin. Em um futuro não tão distante. São Paulo: Instituto Sangari, 2009, p. 129.

3 LACAN, J. “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”. In:
 Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 263.

MILLER, J.-A. “L’homme décidé: entretien avec Jacques-Alain Miller”. Paris: Vacarme, 2014.