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quarta-feira, 26 de agosto de 2020

TEXTO - Uma leitura inaugural sobre a escrita em psicanálise

 Uma leitura inaugural sobre a escrita em psicanálise:

 Considerações sobre “O Seminário sobre a ‘A carta roubada’”

 

Por Flavia Bonfim 



O tema da escrita permitiu a Lacan produzir avanços teóricos no campo psicanalítico. Entretanto, podemos perceber que o percurso lacaniano sobre tal temática não é linear, nem se expressa por meio de uma dimensão desenvolvimentista, estando mais na ordem de uma construção, elaboração. Ao longo de seus seminários, Lacan apresentou diferentes propostas sobre a discussão da escrita em psicanálise, sendo possível enumerar alguns textos pontuais a cada uma delas, a saber: 1) “O Seminário sobre ‘A carta roubada’” e “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” 2) Seminário 9 - A identificação e 3) Lituraterra e Seminário 18 – De um discurso que não fosse do semblante.

Não pretendo aqui percorrer todos esses textos, mas proponho tomar “O Seminário sobre ‘A carta roubada’” como ponto inaugural para uma leitura sobre a escrita, via de discussão para a relação entre letra e significante, mais especificamente sobre o modo de funcionamento deste último. Este seminário de Lacan data de 1956 e remota o conto de Edgar Alan Poe, intitulado “A carta roubada”. O conto de Poe diz de uma carta, que, apesar de não ter seu conteúdo revelado, supõe-se que denuncia os deslizes da Rainha. Tal carta foi roubada/desviada e todos os personagens (Rainha, Rei, Ministro, polícia e investigador Dupin) encontram-se numa trama onde se coloca em jogo a posse dela.

            Ao servir-se do conto, Lacan (1998 c [1956] nos fala de duas cenas: a cena primitiva e a segunda cena, que demarca uma repetição. A primitiva diz da cena onde se encontram a Rainha, o Rei e o Ministro. A Rainha, contando com a desatenção do Rei, deixa a carta à mostra sobre a mesa, virada para baixo. A carta e a desarvoramento da Rainha, porém, não escapam aos olhos do Ministro. Ele rouba a carta; a Rainha o vê, mas não intervém para não despertar a atenção do Rei. Já a segunda cena, passa-se no gabinete do Ministro. Este, para despistar a polícia, deixa a carta roubada sobre o porta-cartas, simulando ser um envelope sem importância. Dupin reconhece que se trata da carta roubada, apodera-se dela e a substitui por uma outra factícia sem que o Ministro perceba. A carta deixada por Dupin, porém, contém uma mensagem para que o Ministro identifique o autor do novo desvio.

            Por meio destas duas cenas, Lacan (ibid.) extrai os três tempos lógicos a partir do qual uma decisão é concluída no momento de um olhar, bem como ele situa os três lugares que a carta atribui aos personagens do conto. O primeiro é um olhar que nada vê – olhar do Rei e da polícia. Já segundo é olhar que vê que o primeiro nada vê e se engana por ver encoberto o que ele oculta – olhar da Rainha e do Ministro. O terceiro é olhar que vê que os dois deixaram descoberto o que era para esconder, podendo assim, possuir ele próprio a carta – olhar do Ministro e do Dupin.

Com isso, Lacan pôde destacar como tais posições se revezam nos três tempos, apontando, assim para o deslocamento da repetição e concluindo que “seu deslocamento é determinado pelo lugar que vem a ocupar em seu trio esse significante puro que é a carta roubada. É isso que para nós o confirmará como automatismo de repetição.” (ibid., p. 18) Este automatismo, diz Lacan (ibid.), extrai seu princípio da insistência da cadeia significante. Sendo assim, o conto vem apontar para aquilo que está em causa nas formações do inconsciente e é, por isso, que Lacan retém o texto “A carta roubada” na medida em que pode abordar os efeitos do funcionamento de uma carta onde está implicada a incidência do significante.

Lacan refere-se à carta como letra, utilizando-se da própria língua francesa para apontar tal consideração. Vale lembrar que “lettre” em francês designa tanto carta quanto letra. Desta carta, pode-se extrair efeitos (repetição, endereçamento e submissão) que advém não do seu conteúdo, mas dela enquanto significante – sendo justamente isso que Lacan procura pontuar. Mais precisamente, ela funciona por que nada se sabe do seu conteúdo. Daí, a noção de carta/letra. Trata- se, nesse sentido, da precedência do significante sobre o significado. Lacan nos diz que “a singularidade da carta/letra, que, como indica o título, é o verdadeiro sujeito do conto: é por poder sofrer um desvio que ela tem um trajeto que lhe é próprio. Traço onde se afirma, aqui, a incidência de significante.” (ibid., p. 33, grifo do autor)

A partir de tais colocações, podemos perceber que Lacan, mesmo se utilizando do recurso letra, não faz distinção entre ela e o significante. “Mas essa letra, como se há de tomá-la aqui? Muito simplesmente ao pé da letra. Designamos por letra este suporte material que o discurso concreto toma emprestado da linguagem.” (LACAN, 1998 a, p. 498) Isto é: neste momento do percurso lacaniano, a letra funciona como suporte material da linguagem, necessário ao jogo significante, mas não se diferencia deste último, sendo ela apresentada neste seminário para especificar o que é da ordem significante. É enquanto velada pelo Ministro que a carta/letra se torna significante. Sobre isso, Ana Costa escreve que “O “desvio” da carta/letra é o que lhe confere o caráter significante, constituindo o caminho da repetição. Nesse ponto pode-se tomar o envelope da carta, revirado pelo ministro, como esse ato de velamento do corpo, próprio ao significante.” (2006, p. 12)

Convém assinalar que a letra, nesse seminário, está mais do lado do simbólico do que do real - como será, anos depois, a proposta lacaniana em “Lituraterra” e Seminário 18. Para acompanharmos essa modificação, convém não ignorarmos o fato de que o ensino de Lacan, em seu início, tem como ponto de partida sua confiança no simbólico e que somente mais tarde assistimos um cercamento mais rigoroso da categoria real, para ao seu final propor uma equivalência entre os três registros.  Tanto em Lituraterra quando em De um discurso que não fosse do semblante, Lacan mais uma vez recorre ao conto da carta roubada, não para reformular nem contradizer as colocações que havia apresentado até então, mas para introduzir um a mais, produzindo, assim, um salto teórico. Ele nos apresenta a letra nesses textos como litoral, como aquilo que cai do sitio do sujeito na linguagem e faz efeito sobre o corpo. A letra não está mais situada do lado do significante, pelo contrário, ela faz litoral entre “campos estrangeiros”. São eles: saber e gozo, simbólico e real. Mais uma vez recorrendo às considerações de Costa (2008), a psicanalista nos escreve que, no texto “Lituraterra”, Lacan faz um aproximação entre letra e gozo, situando isso por meio de dois pontos: letra como produção de resto (deslizamento de letter para litter, letra/carta para lixo) e como buraco no saber.

Realizada as devidas considerações, retomemos ao texto “O seminário sobre ‘A carta roubada’”. Além do efeito de repetição, temos o aspecto do endereçamento que o conto nos coloca. Lacan lança-nos uma questão a esse respeito, a saber: “Então, a carta/letra sobre a qual quem a enviou ainda conserva direitos não pertenceria àquele a quem se dirige? Ou será que este último nunca foi o verdadeiro destinatário?” (1998 c [1958], p. 30) A carta é endereçada à Rainha, porém, tornou-se inerente a ela o desvio, estar à mostra para ocultar-se, ser procurada e achada - sendo precisamente isto o aspecto de significante em seu endereçamento. É, portanto, uma carta que sempre chega ao seu destino, observa Lacan (ibid.), todavia, seu destino não é naquele a quem ela foi endereçada, mas no emissor que recebe do receptor sua própria mensagem sob forma invertida, naquele que a remete a partir do Outro. Isso nos permite dizer, com Lacan, que o endereçamento é ao sujeito, na medida em que este não é aquele que fala, mas é exatamente aquele que é falado na cadeia significante, aquele que é constituído pelo Outro. Relançando-se sobre “A carta roubada” em momento mais avançado do seu ensino, Lacan ratifica tal consideração ao dizer que “não é a mulher cujo endereço a carta satisfaz, ao chegar ao seu destino, mas sim ao sujeito, ou seja, para redefini-lo” (2009 [1971], p.125)

Para encerrar, tratemos do efeito da submissão, que poderia ser traduzido como: “a carta feminiza”. Nas palavras de Lacan: “ela feminiza aqueles que revelam estar numa certa posição – a de estarem à sombra dela.” (2009 [1971], p.125) Deter a carta implica estar submetido a ela, ficar a sua sombra. A sombra, por sua vez, refere-se ao feminino, logo, ter é carta é portar seu enigma.

A carta - melhor caberia dizer que nesse momento do ensino de Lacan, a letra – está do lado do falo, do significante. A carta foi falicizada. Quem a detém, acha que tem o poder, mas não tem. Pelo contrário, fica numa posição de submissão, de objeto. Com isso, suponho que poderíamos dizer que o falo entra nesse circuito na medida em que ele, em sua vertente imaginária é, ao mesmo tempo, o que aponta para o poder, o que faz destaque, o que produz luz; mas, enquanto significante, produz sombra, velamento. Ou seja, o falo entra no circuito a partir do ato que cada personagem faz da carta/letra.

O falo, por sua vez, nos aponta Lacan (1998 b [1958]), só pode exercer seu papel enquanto velado, apontando, assim, para seu estatuto de significante. Do mesmo modo, podemos dizer sobres os efeitos da carta, que só existem porque ela foi tomada como significante. Quem tem a carta, oculta não ter. Talvez aqui pudéssemos aproximar a noção de presença e ausência evocada pela dimensão significante, conferida no jogo do For-Da. Por outro lado, a carta só tem valor na medida em que seu conteúdo não é revelado. Um outro modo de dizer é que: quem está com a carta, não pode fazer uso dela. É somente enquanto significante que ela funciona.

Quanto ao efeito de submissão, me ocorre o texto “A significação do falo” onde Lacan nos diz que o fato da feminilidade encontrar seu refúgio na máscara fálica “tem a curiosa conseqüência de fazer com que, no ser humano a própria ostentação viril pareça feminina.” (1998 b [1958], p. 702) Ostenta-se ter o poder, mas a posição é de objeto em relação ao funcionamento da carta. “Pois, ao entrar no jogo como aquele que esconde, é do papel da Rainha que ele tem que revestir, inclusive nos atributos da mulher e da sombra, tão propícios ao ato de esconder.” (LACAN, 1998 [1956], p. 35) Não é sem importância, como lembra Lacan (1998 [1956]), que para disfarçar a carta, o Ministro a endereça si mesmo e no envelope pode-se identificar uma letra de mulher.  Nesse sentido, finalizo com o comentário de Costa:

Esses são os efeitos que o autor primeiro isola da relação ao significante. A perda de um referente natural/universal implica uma perda do lado da significação. Deste modo, o sujeito será produzido numa relação às leis da linguagem, sendo determinado por elas e, por essa razão, advém daí sua condição de feminização, dessa submissão a essas leis. (2008, p. 46)                                                                                                                                                                                                    

 

REFERÊNCIAS:

COSTA, Ana. Conceitos da psicanálise e fundação de um campo. In: Fundamentos da psicanálise – Revista da Associação psicanalítica de Porto Alegre. - Porto Alegre: APPOA, n° 31, 2006. 9-13 p.

_____________Relações entre letra e escrita nas produções em psicanálise. In: Estilos da Clínica, 2008, Vol. XIII, no 24, 40-53 p.

 

LACAN, Jacques. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998 a. 496 -533 p.

_______________A significação do falo. (1958) In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998 b. 692 -703 p.

_______________ Lituraterra. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2003. 15 – 25 p.

_______________ O Seminário sobre “A carta roubada”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998 b. 13-66 p.

_______________ Seminário 18 – De um discurso que não fosse do semblante (1971). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.

 

 

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