Fragmento não-todo*
Por Sérgio de Campos
No que tange ao gozo feminino, é possível afirmar que nele há algo de extravio por não seguir a lógica fálica. Esse extravio é resultado de um gozo nãotodo que se revela para ambos, homem e mulher, como opaco, difuso e enigmático. Não obstante senti-lo, a mulher pouco ou nada pode esclarecer sobre ele. Não há nada nele de transmissível ou compartilhável. Esse gozo está relacionado exclusivamente ao amor. Porém, por ser difuso e sem limites, não tem necessariamente conexão com o ato sexual, já que ele está contido de maneira variada nas diversas modalidades de gozo na mulher.
Com uma mulher, o homem ou se prepara para cantar o amor ou a guerra. Com efeito, a guerra que a mulher evoca não é fruto da inveja do pênis ou do desejo insatisfeito, mas porque ela é a hora da verdade do homem. Portanto, ele prefere enfrentar qualquer inimigo a uma mulher como suporte dessa verdade. Os mais prudentes aconselham que não deva brigar com gente que usa saia: padre, juiz e mulher. Se o poder dos dois primeiros é oriundo das insígnias fálicas, o poder da mulher emana do gozo nãotodo. Esse gozo louco, escandaloso, sem referências simbólicas que pudessem capturá-lo ou circunscrevê-lo, é algo que amedronta os homens e torna alguns precavidos, sinal do desejo advertido ou do desejo impedido na neurose obsessiva. Las mujeres alteradas dos quadrinhos de Maitena, cartunista argentina, é uma tentativa de ilustrar o desvario do gozo feminino e o consequente temor que afeta os homens.
Ademais, diante dos impasses com o feminino, tendo levado sua análise a termo, o sujeito desvenda que o novo amor não é um novo objeto de amor, mas, sim, uma nova maneira de amar. Uma nova maneira de amar que inclui o enigma do impossível de compreender uma mulher como mote do desejo, pois a mulher é como a lua: hoje clara, amanhã escura. Com efeito, o enigma se torna a condição de desejo, objeto a, de "minha mulher" como "fulana". Essa descoberta articula o amor e o desejo que, a partir de então, são denominados de amoresejo, a liebe do sujeito. Liebe, palavra alemã que recobre ao mesmo tempo o desejo e o amor. Antes, o sujeito tinha a "minha mulher" como posse desinteressante e a Outra mulher, "fulana", como busca fugidia. Agora, o sujeito consente que la donna è móbile qual piúma al vento, muta d'accento e de pensier.
No amor se inventa e essa é a condição exigida como suplência da não relação sexual. Conciliar o desejo, o amor e a pulsão em relação a uma mulher não é tarefa fácil, como evoca Ovídio: "não posso viver sem ti, nem contigo". Entretanto, não é missão impossível. O enlace do amor ao desejo mediante a pulsão é obra do encontro, visto que esses elementos reunidos ou disjuntos, mesclados ou puros, transitórios ou duradouros, se amarram segundo a loucura de cada um.
*Texto extraído do link http://www.mulheresdehoje.com.br/texto.asp , referente ao Evento XIX ENCONTRO BRASILEIRO DO CAMPO FREUDIANO Mulheres de hoje: figuras do feminino no discurso analítico.
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