Autora: Flavia Bonfim
A loucura
Com Philippe Pinel, a loucura foi tomada como objeto da psiquiatria, constituindo esse campo de saber. Por meio desse saber, ganhou estatuto de doença mental. Entretanto, com esse movimento deu-se a anulação da cidadania do louco e a atribuição de um estatuto negativo a essa forma de subjetivação. Não há como ignorarmos o contexto que atravessava esse olhar da psiquiatria – a saber, as formulações cartesianas do século XVII e iluministas do século XVIII, bem como o pensamento inerente às revoluções americanas e francesas, que juntas contribuíram para postular a figura do cidadão identificada com a subjetividade fundada na razão. Nessa perspectiva, o cidadão é o ser da razão; e razão e loucura caminham em direções opostas . Assim, restou ao louco a exclusão simbólica e social pelo enclausuramento como via de tratamento.
O que é interessante notar nesse movimento iniciado por Pinel de construção da clínica psiquiátrica, é que ao mesmo tempo que a loucura é marcada pela negatividade e exclusão, é introduzido também a idéia de curabilidade da doença mental, apostando em um fundo de razão existente no louco. Assim, paradoxalmente, a constituição subjetiva do louco é positivada, pois Pinel acreditava numa razão apesar loucura. Além disso, com a noção de tratamento foi possibilitado o encontro com o louco.
Tal forma de abordar a psicose deixou marcas na clínica psiquiátrica. Mas é com Freud se pondo a esboçar um saber sobre a loucura, que podemos hoje abordar a loucura de maneira diferente. Fernando Tenório fala em “herança de Freud” quando este propõe a razão na loucura, pois é por meio da leitura freudiana que o delírio passa a ser encarado como forma do sujeito dizer a sua verdade. Os sintomas histéricos, os sonhos, os lapsos, as alucinações, os delírios, antes de Freud eram tomados no registro do erro, da negatividade. Foi a partir dele que todos esses fenômenos ganharam estatuto de mensagem passível de decifração, sendo justamente por eles que o sujeito emergia. Freud inverteu a ordem da clínica psiquiátrica ao positivar o que era chamada de desrazão.
Assim, para abordar a psicose, recorro a alguns artigos que fazem parte dessa herança deixada por Freud e, em seguida, tomo a terminologia lacaniana da foraclusão do Nome-do-pai para pensar esse tema.
Algumas formulações freudianas sobre a psicose
Em “Neuropsicoses de defesa” (1894), Freud fala da psicose como confusão alucinatória e a identifica como uma defesa radical e mais poderosa que a neurose para lidar com uma idéia incompatível. O eu rejeita – Verwerfung - a representação como se ela nunca estivesse existido. Freud descreve o processo da seguinte forma: o eu rejeita a idéia incompatível, em seguida, a idéia é ligada a um fragmento da realidade e, posteriormente, o eu se destaca, parcial ou inteiramente, da realidade por meio das construções alucinatórias.
Dois anos depois, em “Novas observações sobre as neuropsicoses de defesa”, Freud estabelece um paralelo entre a paranóia e a neurose obsessiva, aplicando um esquema classificatório desta última à primeira. Ele aponta que as recriminações na paranóia são projetas no mundo exterior e na obsessão elas se restringem ao interior. Também nesse artigo, ele confirma a rejeição como mecanismo de defesa na psicose e fala em três modalidades de sintomas. Sintomas primários de defesa, onde encontramos os sentimentos de estranheza e desconfiança; os sintomas de retorno, no qual a desconfiança passa aparecer como alucinações e os sintomas defensivos secundários, que são os delírios que surgem como uma tentativa de explicar as alucinações. Fracassando esse último tipo de sintoma, o paranóico evoluiria para as alterações do eu, que é expresso pela melancolia ou pelo delírio de grandeza.
Em 1911, trabalhando sobre a bibliografia de Schreber para pensar abertura do quadro psicótico, Freud fala na tríade: frustração – regressão – fixação. Ele pensa a paranóia como decorrente de uma frustração da não satisfação de uma pulsão homossexual, no qual há uma regressão e fixação libidinal no estádio do narcisismo. Para demonstrar o que está em jogo na paranóia, Freud realiza uma análise morfo-sintática da sentença “eu o amo” ð ”eu, homem, amo outro homem” ð transformação em delírio persecutório: eu o amo – eu o odeio ð projeção: ele me odeia.
Apesar de Freud considerar a projeção como um mecanismo comum à neurose e rotineiro da vida das pessoas, ele insiste que seja também um mecanismo inerente a paranóia porque ele depende essencialmente do narcisismo e, portanto, do registro imaginário. Em “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914), Freud articula o narcisismo e a paranóia. Assim, escreve que, na psicose, ocorre uma perturbação da relação libidinal, de modo que a libido é afastada do mundo externo e é redirecionada para o próprio eu (introjeção), ocasionando um desinteresse pelas pessoas e coisas, e um total investimento do sujeito no seu próprio eu. Isso seria ocasionado pelo afastamento do ego para fora da realidade.
No caso Schereber, Freud também trabalha sobre a questão do delírio de grandeza, reformulando algumas observações feitas em 1895, no “Rascunho K”, no qual entendia o delírio de grandeza como um produto patológico, referente a fase final e mais grave da psicose, visto que implicava num remodelamento do eu. Em 1911, entretanto, ele ressalta o caráter apaziguador do delírio de grandeza em detrimento a outros tipos de delírios. Observa que o delírio místico comporta a figura de Deus, sendo possível entendê-la com referência a figura paterna. Freud articula a figura de Deus ao pai de Schereber e, desse modo, demonstra que a função paterna é o eixo da estruturação delirante. É justamente porque a figura do pai não foi tomada como valor simbólico que as versões imaginárias do pai – Dr. Flechsig e Deus – estão presentes em seu discurso. Nesse momento, percebemos que o que está em jogo é aquilo que mais tarde Lacan chamou de foraclusão do significante do Nome-do-pai.
Ainda no caso Schereber, Freud, ao descrever a formulação do delírio a partir da projeção, se questiona se poderia dizer que o que foi recalcado tenha sido projetado para fora, mas sim que “o que foi abolido dentro volta do lado de fora”. Aqui, observamos duas construções lacanianas que nos remetem a uma releitura dos termos freudianos. Freud esboça certa distinção entre abolição/rejeição e recalque, que Lacan retoma apontando para um mecanismo específico da psicose - a foraclusão. E situa a frase de Freud introduzindo termos mais específicos – “o que foi foracluído no simbólico retorna no real.”
No artigo “Neurose e psicose” (1923), Freud fala da psicose como o resultado de um conflito entre o eu e o mundo externo. É nesse texto que ele descreve o delírio como um remendo no lugar onde se formou uma fenda em função do conflito mencionado. Assim, diz ele, o delírio na psicose é uma tentativa de cura, uma reconstrução da realidade. Já em “A perda da realidade na neurose e na psicose” (1924), ele fala em dois tempos no processo de eclosão da psicose. No primeiro tempo, o eu é arrastado para longe da realidade e, no segundo tempo, se dá a criação de um nova realidade para reparar a perda a mesma, que não crie objeções como a antiga que foi abandonada.
A foraclusão do Nome-do-pai: a questão da psicose na primeira clínica de Lacan.
Lacan postula que o desejo do sujeito é marcado por significantes e é por meio dos significantes introduzido pelo Outro que ele se coloca no mundo. Entre esses significantes, ele afirma que há aqueles primordiais sem os quais a ordem das significações humanas não poderia estabelecer-se. Assim, aponta que a questão da psicose está justamente na ausência de um significante primordial, de base: o significante do Nome-do-pai. Diante dessa ausência, nos diz Lacan no Seminário 3 (1956), dá-se a “aparição de a nova estrutura nas relações entre os significantes de base, a criação de um novo termo na ordem do significante”, entretanto, isso não ocorre sem ter “um caráter devastador” para o sujeito e é aí que podemos situar a psicose.
Para falar da falta desse significante essencial, Lacan recorre ao mito do Édipo, dizendo que algo não se completou nele. Ele localiza o Complexo de Édipo como o instrumento pelo qual o ser humano tem acesso a uma estrutura humanizada do real, uma estrutura balizada pelo simbólico. Quanto a isso, ele diz:
“... para que haja realidade, acesso suficiente à realidade, para que o sentimento de realidade não seja como ela é na psicose, é preciso que o complexo de Édipo tenha sido vivido.” (1956, p. 226)
Tomando como modelo os três tempos para o Édipo proposto por Lacan em 1957-1958, podemos situar esquematicamente o registro no qual o psicótico está referido – o registro imaginário. Na psicose, não se completaria o Édipo, pois o sujeito não avançaria nos três tempos e se encontraria situado em seu primeiro tempo lógico. Nesse primeiro tempo, a criança está identificada ao objeto do desejo da mãe, sendo bebê = falo. Vivem numa relação especular, numa relação de reciprocidade, onde a mãe é portadora do falo para a criança e, por sua vez, esta é o falo para mãe. A mãe como ser falante, é submetida a lei simbólica e a criança recebe a incidência dessa lei, mas de maneira equivocada como uma lei onipotente. Uma lei atrelada a boa ou má vontade da mãe para satisfazer as necessidades do bebê, uma lei caprichosa e incontrolada, no qual a criança se vê submetida.
O pai tem como função, enquanto o portador do falo, intervir nesta relação imaginária, privando a mãe do objeto de seu desejo, separando a criança de uma alienação radical e instaurando a lei, mas um lei organizadora, reguladora e não caprichosa como a materna. O pai priva a mãe daquilo que ela não tem – o falo e com isso faz existir o falo como elemento simbólico. O falo é o significante que permite ao sujeito atribuir significações a seus significantes. É o significante fálico que permite ao sujeito situar-se na ordem simbólica e na partilha do sexos. O Nome-do-pai, enquanto significante que se introduz na relação entre a mãe e a criança, atua refreando a demanda materna, possibilitando que o desejo possa emergir. Entretanto, o pai só pode instaurar a lei se esta foi introduzida pelo discurso materno. Sobre isso, nos diz P. Julien:
“... esse significante [ Nome-do-pai ] não é transmitido ao sujeito nem por um homem que se declara pai, nem pela sociedade política ou religiosa, mas pelo desejo da mãe, enquanto mulher.” (2002, p. 53)
O que ocorre na psicose, como já mencionamos anteriormente, é justamente a foraclusão desse significante primordial. O significante dos Nome-do-pai que é organizador do campo do Outro é rejeitado, não está inscrito, foracluído, tendo como conseqüência a supressão da significação fálica, que dá acesso ao desejo. A demanda materna não encontra um limite, de modo que o Outro para o psicótico permanece como potência ao qual nada faz exceção , deixando-o preso ao caráter onipotente da demanda do Outro. Um Outro que se mostra terrível e gozador.
Lacan fala em um buraco ao nível significante e é como buraco, abismo, que a falta significante se faz sentir como tal. A abertura do quadro psicótico se daria, então, quando o sujeito é confrontado com a questão que o chame responder com esse significante que lhe falta. Ou seja, o psicótico surta quando ele é confrontado com esse buraco. Até então, nos diz Lacan, o pré-psicótico vivia se amparando em “muletas imaginárias” que lhe davam um certo tipo de suporte para lidar com a ausência do Significante do Nome-do-pai. Restando ao psicótico buscar imagens que lhe remetam a essa função paterna. O que deveria ser inscrever ao nível simbólico, é compensado com identificações. Entretanto, ele não experimenta essa ausência ao nível significante sem ser permeado por um sentimento de perplexidade. Nesse circuito, o psicótico funciona ao registro imaginário, onde o outro é tomado como espelho e modelo de identificação imediata.
O que provoca a eclosão do surto psicótico é o encontro do real , tal como o encontro amoroso, a paternidade, a revelação religiosa, a perda inesperada,.... Esse encontro com o real rompe com as significações adquiridas pelo psicótico. Dá-se aí, o sentimento de estranheza, de despedaçamento e de desconfiança, as alucinações ... a pura desestabilização. Mas é somente com o delírio, ou melhor, com a metáfora delirante, já descrita por Freud como uma tentativa de reconstrução, que o sujeito se vê um pouco estabilizado, pois tenta suprir a carência do significante Nome-do-pai, permitindo que o seu mundo ganhe uma certa consistência para ele. E é por meio dessa metáfora, que não é a paterna, mas tenta propiciar um efeito amenizador ao temperar o gozo, sem contudo, barrar completamente o Outro, que podemos apreender que o significante que foi foracluído no simbólico retorna no real.
Aqui, finalizo as considerações psicanalíticas sobre o tema em questão, reconhecendo o valor da herança de Freud e a importância de suas formulações, bem como do conceito de foraclusão do Nome-do-pai de Lacan - instrumento indispensável para a compreensão da clínica da psicose na primeira clínica lacaniana.
Referências bibliográficas:
q BALBI, L. Sobre o delírio de grandeza. In: Revista da Escola Letra Freudiana. Rio de Janeiro: 1990.
q FREUD, S – As neuropsicoses de defesa – vol. III, Rio de Janeiro, Imago editora, 1894.
q _________ Novas Observações sobre as neuropsicoses de defesa – vol. III, 1896
q _________ Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia – v. XII, 1911.
q _________ Sobre o narcisismo: um introdução, v. XIV, 1914
q _________ Neurose e psicose, v. XIX, 1923
q _________ A perda da realidade na neurose e na psicose, , v. XIX, 1924
q JULIEN, P. Psicose, uma resposta ao acontecimento in: Psicose, perversão, neurose: a leitura de Jacques Lacan– Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2002.
q LACAN, J. Dos significantes primordiais, e da falta de um in: Seminário 3 – As psicoses, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1956
q QUINET, A Psicose: uma estrutura clínica in: Teoria e clínica da psicose – Forense Universitária, 2000.
q TENÓRIO, F. A Clínica da Reforma Psiquiátrica in: A psicanálise e a clínica da Reforma Psiquiátrica, Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
Ótimo texto, Flavia! Tocou nos pontos importantes, deu um traçado desde o início, e fugiu dos "jargões lacanianos", que as pessoas costumam repetir sem saber porquê. Excelente!
ResponderExcluirObrigada, Arthur!
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