Por Marcelo Veras
*Texto original publicado na Revista CorreioExpress, n. 2, março de 2018. Disponível no link: https://www.ebp.org.br/correio_express/extra001/texto_MarceloVeras.html
|
Deus, existindo ou não, lançou os dados. No turbilhonar, pode
sair um branco na Tanzânia, um amarelo no Canadá; quem sabe um negro no sul dos
Estados Unidos? Tantas e tão diversas possibilidades apontam para a vertigem da
diversidade humana. Os humanos formam grupo homogêneo, quase homo-genético em
sua hétero-geneticidade (neologismos por minha conta). Mas o turbilhonar cessa
– os dados caem e jamais serão mudados: você nasceu negro, no Brasil, em 2018.
E você certamente não saberá que em uma sala de hotel em Belo Horizonte,
psicanalistas tentam dar conta do atraso histórico em abordar a questão do
sofrimento subjetivo decorrente do racismo.
Lacan lançou um desafio aos
psicanalistas: Como nós, quero dizer os psicanalistas, vamos responder
ao fato de que a segregação foi posta na ordem do dia por uma subversão sem
precedentes?1.
Ao ser convidado para essa
mesa, com certo constrangimento, ouvi de um colega negro o comentário: que bom
que, enfim, a psicanálise resolveu falar do racismo; e mais, ao procurar textos
recentes deparei-me com uma produção psicanalítica esquálida e completamente
desproporcional à população brasileira, já que vivemos em um país onde mais da
metade da população é preta ou parda. Talvez os psicanalistas não vissem o
racismo como algo da prática da psicanálise, ou mais inquietante, como algo que
não surge em sua prática cotidiana. Seria então o caso de afrontar a pergunta
desconfortável que vira e mexe ouvimos: a psicanálise é, ou não, elitista? Em
um país continental em que os negros estão constantemente ancorados nas classes
econômicas menos favorecidas, como encontrar muitos negros em análise? Como
encontrar muitos negros psicanalistas quando sabemos que a formação de um
psicanalista da Escola Brasileira de Psicanálise envolve anos de análise,
supervisão, viagens a congressos, etc.?
Por que a psicanálise não é
elitista? Porque somos trabalhadores que pagamos com a presença de nossos
corpos, sem intermediários, sem mais valia, para o exercício do nosso ofício. O
analista já foi associado a um pedinte, que abre sua mão no final da sessão
para receber sua remuneração, também já foi associado a um santo por Lacan. A
pergunta que deixo para os psicanalistas da EBP é: como formar psicanalistas
que não possuem renda suficiente em uma Escola onde tudo é tão caro? Aqui, não
posso me esquecer do esforço de Judith Miller para que candidatos a analista
cubanos, venezuelanos e de outros países em vulnerabilidade política e social
pudessem encontrar o Campo Freudiano. Pergunto-me até que ponto o gesto de Judith
não se aproxima da lógica da política de cotas.
Não podemos levar essa
questão adiante sem considerar a presença do racismo no cotidiano e a
dificuldade em oferecer um lugar de fala aos negros brasileiros. Como em um
país, no qual o resultado de pesquisa elaborada em 2008 demonstra que, apesar
de compor metade da população brasileira, os negros elegeram pouco mais do que
8% dos 513 representantes escolhidos na última eleição, a política de cotas
pode não ser considerada justa?
No fundo, essa pergunta é o
eco da crítica que Frantz Fanon faz ao livro Psicologia da colonização,
de um dos grandes psicanalistas franceses, Octave Mannoni, quando este afirmava
que a França era o país menos racista do mundo, que os negros na França não
sofriam como os negros nos Estados Unidos2. Fanon, em Pele
negra, máscaras brancas, não deixa dúvidas de sua posição: Mannoni era
incapaz de ver o racismo em si.
Em 2018 estamos muito longe
do texto “A questão da raça”, primeiro e equivocado texto sobre a questão
racial feito pela Unesco em 1950. Três outras versões tentaram da conta dos
equívocos desde então. Estamos ainda mais distantes da querela envolvendo
Arthur de Gobineau, que no século 18 publica seu Ensaio sobre a
desigualdade das raças3, grande inspirador do racismo científico,
e a quem é atribuída a famosa crítica racista à miscigenação: “Não creio que
viemos dos macacos mas creio que vamos nessa direção.”
Contudo, em 2018, estamos
próximos da resposta de Anténor Firmin a Gobineau, que no mesmo século 18, em
seu livro Da igualdade das raças humanas, contraria o
determinismo e afirma que “o acaso entra de modo notável como a parte maior de
todas as coisas humanas”4. Parece pouco, mas é enorme pensar que
isso foi dito em 1885, mesmo ano em que Leopoldo II, Rei da Bélgica, inicia o
mais brutal genocídio de populações negras de todos os tempos no Congo.
E o que dizer do viés de
leitura de artigos como o do cientista Sérgio Pena, citado por Jésus Santiago
no convite a esse colóquio, em que a proximidade genética entre as raças, ao
invés de destruir o argumento do racismo, é utilizado por alguns para
precisamente fazer valer a distorção do conceito de meritocracia em detrimento
do conceito de reparação: se todos são iguais geneticamente, todos competem em
mesma situação? Ou seja, se negros e brancos são iguais geneticamente, que
vença o melhor nos concursos públicos e nas seleções de emprego.
Ora, sobreviver no mundo
competitivo das oportunidades não tem nada a ver com os jogos olímpicos, o
corpo que interessa à psicanálise não é feito de carne e osso, ele é feito de
carne, osso, e de um estranho objeto que está sempre em exclusão interna a todo
discurso a que os corpos são submetidos. É o que a psicanálise designa como o
objeto da pulsão. É esse objeto que pode ter uma função de brilho para alguns,
ou de objeto repulsivo por outros. Nesse sentido, entendo a pertinência do
título desse colóquio – Por que só há raças de discurso? – como modo de
atribuição de um valor de agalma (brilho) ou de Kakon (dejeto), de objeto
precioso ou objeto perigoso aos corpos supostamente naturalizados pelo
progresso da ciência. E nesse quesito a competitividade é outra: se
geneticamente somos iguais, a carne mais barata do mercado continua sendo a
carne negra.
Lacan, nos anos setenta,
alerta para o futuro da segregação e do racismo. À época, pareceu estranho que
em plena efervescência dos movimentos de libertação dos corpos ele apontasse
para o fato de que os avanços democráticos não nos protegeriam da barbárie. Não
por acaso ele nomeia seu Seminário dos anos 70, ano em que ele mais falou
explicitamente da segregação, com o título de “...ou pior”. É nesse sentido que
o psicanalista Éric Laurent se refere ao racismo. Para ele, o racismo muda seus
objetos na medida em que as formas sociais se modificam. Contudo, ainda na
perspectiva lacaniana, é impossível poupar a comunidade humana de uma rejeição
do gozo inassimilável proveniente de uma possível barbárie5. A
palavra barbárie, aqui, deve ser pensada como o fracasso dos ideais em
disciplinar e legislar sobre os corpos.
Ou seja, Lacan desloca a
questão do racismo. Ele deixa de ser apenas uma questão de supremacia e
colonialismo para ancorar suas raízes em um complexo inconsciente de horror e
fascínio que o gozo encarnado em outra raça pode causar. Aqui saímos do
registro do negro para o registro do opaco.
Se Lacan insistiu nessa
dimensão do racismo na “Proposição...”, foi para salientar que todo
conjunto humano comporta no fundo um gozo extraviado, um não saber sobre o gozo
que corresponderia a uma identificação. O psicanalista é simplesmente aquele
que deve saber disso para constituir a comunidade dos que se reconhecem como
psicanalistas6.
Sobre a escravidão, concordo
com o que comenta Antônio Risério sobre Proudhon, quando esse afirma que toda
escravidão é um assassinato; penso mesmo que a psicanálise se aproxima desta
visão. Diz ele: a tensão existencial do escravo reside exatamente na
contradição entre pessoa e coisa. É possível tentar coisificar uma pessoa, mas
é impossível levar essa coisificação ao ponto final. Restará sempre um cerne
indestrutível. Um indestrutível átomo de humanidade. E é justamente essa chama
do humano que aquece a rebeldia essencial7.
É o que nos permite perceber
que o equívoco a que a história pode nos induzir é de pensar que o Outro, para
o negro, é o branco colonizador e escravagista. Na verdade, o Outro para o
negro, no Brasil de hoje, são os milhões de negros escravizados, em
subempregos, as mães empregadas domésticas, os jovens negros assassinados a
cada 23 minutos, os pais humilhados, etc. Eis porque o significante reparação é
tão importante na questão do racismo hoje.
1LACAN, J. “Allocution sur les psychoses de l’enfant”. In: Autres
écrits. Paris: Seuil,
2001, p. 363.
2 FANON, F. Oeuvres, Du pretend complexe de dependence du colonisé. Paris: Ed. La Découverte, 2011, p.136.
3 GOBINEAU, A. Essai sur l’inégalité des races humaines. Paris: Éditions Pierre Belfond, 1967, 873 pages.
4 FIRMIN, A. “Le hasard entre pour une part notable dans toutes les choses humaines”. In: De l’Égalité des Races Humaines (Anthropologie positive). Paris: Librairie Cotillon 1885, p. 7. Exemplar da Biblioteca Nacional da França.
5 LAURENT, E. Le racisme 2.0, Lacan Quotidien, n. 371, 26 janeiro 2014.
6 Le racisme 2.0, ibid.
7 RISÉRIO, A. A utopia brasileira e os movimentos negros. Editora 34: São Paulo, 2007, p. 326.
2 FANON, F. Oeuvres, Du pretend complexe de dependence du colonisé. Paris: Ed. La Découverte, 2011, p.136.
3 GOBINEAU, A. Essai sur l’inégalité des races humaines. Paris: Éditions Pierre Belfond, 1967, 873 pages.
4 FIRMIN, A. “Le hasard entre pour une part notable dans toutes les choses humaines”. In: De l’Égalité des Races Humaines (Anthropologie positive). Paris: Librairie Cotillon 1885, p. 7. Exemplar da Biblioteca Nacional da França.
5 LAURENT, E. Le racisme 2.0, Lacan Quotidien, n. 371, 26 janeiro 2014.
6 Le racisme 2.0, ibid.
7 RISÉRIO, A. A utopia brasileira e os movimentos negros. Editora 34: São Paulo, 2007, p. 326.
Nenhum comentário:
Postar um comentário