Acabou de ser publicado o livro "Corpo e afeto: população negra em pauta", pela Editora Bagai, organizado por Wesley Henriques Alves da Rocha e Érika Aparecida de Oliveira, do qual pude contribuir com o capítulo intitulado "Alienação e Separação: por uma leitura sobre os atravessamentos do racismo na constituição subjetiva."Segue abaixo o texto que escrevi. O livro completo pode ser baixado pelo link: https://editorabagai.com.br/product/corpo-e-afeto-populacao-negra-em-pauta%e2%80%89/
BOA LEITURA!
ALIENAÇÃO
E SEPARAÇÃO: POR UMA LEITURA SOBRE OS ATRAVESSAMENTOS DO RACISMO NA
CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA
Flavia
Gaze Bonfim
Através das noções de
“alienação” e “separação”, o psicanalista Jacques Lacan fundamenta a
constituição subjetiva por meio do discurso do Outro. Mas de qual “Outro”
estamos falando? Sendo altamente criteriosa com a noção de Outro proposta no
ensino lacaniano, sabemos que ela não se restringe ao desejo materno e a lei
paterna, mas também comporta o tesouro dos significantes que advém da
linguagem, da cultura e da civilização. Aqui,
se coloca, portanto, um impasse que os psicanalistas brasileiros precisam
atravessar: nossa cultura não é a francesa, nem europeia, a qual Lacan tomou
para articular seu ensino. Isso, contudo, não
implica em recusar que a psicanálise nos ofereça um importante arcabouço
teórico para pensar a constituição do sujeito, seu desejo e seus modos de
sofrimento. Mas para continuarmos nos servindo de sua radicalidade e de seu
rigor, será preciso um trabalho urgente
e fundamental de pensar as contribuições da psicanálise à luz das
particularidades sociais, culturais, econômicas e políticas do Brasil.
É digno de nota que importantes psicanalistas negras brasileiras
iniciaram essa trilha, contribuindo para o avanço da práxis psicanalítica,
entre as quais, posso citar: Neusa Santos Souza, Isildinha Nogueira e Lélia
Gonzalez. Contudo, essa trilha ainda continua sem ser percorrida pela maioria
dos analistas brancos brasileiros. Ao me incluir entre estes, não é demais
afirmar que estamos atrasados nessa discussão e temos uma responsabilidade
ética de nos aproximarmos destas leituras e de tantas outras que nos ajudem a
pensar o racismo denegado no Brasil, visto que sem um aprofundamento nesta
questão não estaremos à altura de uma clínica realizada em solo brasileiro. Uma
clínica capaz de realmente oferecer uma “escuta” para os sujeitos que nos
procuram, especialmente para aqueles que vem sendo historicamente silenciados,
como é o caso das pessoas negras.
Posto isso, a proposta deste
trabalho é discutir as especificidades que atravessam a constituição subjetiva
da pessoa negra, tendo em vista, que a marca do racismo ainda se coloca de
forma tão presente e cotidiana no Brasil. Sendo assim, partirei das noções de
alienação e separação no ensino lacaniano, para em seguida pensar o racismo
como uma marca cultural no Brasil e suas possíveis consequências sobre os
negros.
ALIENAÇÃO
E SEPARAÇÃO NO ENSINO LACANIANO
Proveniente do latim alienare, a palavra alienação quer dizer
“tornar alguém alheio a alguém”; “tornar estrangeiro”, sendo elevada ao
estatuto de conceito em diferentes campos de saber. De acordo com Ricardo
Nepomiachi (2014), Lacan se serve desse termo no início do seu ensino para
articular a alienação presente na formação do Eu, na medida em que sua
constituição advém de uma exterioridade, do seu reconhecimento no olhar do
Outro, que lhe oferece uma gestalt –
conferindo-lhe uma unidade imaginária. Posteriormente, no seu segundo ensino,
quando começa a trabalhar o conceito de Real, Lacan aborda essa noção para
tratar não propriamente a formação do Eu, mas a constituição do sujeito. (NEPOMIACHI, 2014)
Se o Eu refere-se a noção de unidade, próprio
ao campo da consciência, o conceito de
sujeito busca demarcar a divisão subjetiva entre a consciência e o
inconsciente, entre o saber e não saber a respeito de si próprio, fruto dos
efeitos alienantes da intervenção do significante. Será, portanto, no Seminário, o livro 11- Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise (1998
[1964]), que Lacan se dedicará a pensar como o sujeito se constitui, indicando
que ele emerge no campo do Outro, imerso na linguagem e como efeito de duas
operações: alienação e separação. Dizem respeito, contudo, a duas operações
disjuntas, mas articuladas que abordam a relação do sujeito com o Outro. Convém
enfatizar que não se tratam de etapas, fases, remetendo a uma visão
desenvolvimentista que a criança alcançaria, mas diz de uma lógica onde se
insere a constituição do sujeito.
Para falar de cada uma
delas, Lacan se serve da teoria dos conjuntos: reunião e interseção. Ao
articular a dimensão da alienação, Lacan (1998 [1964]) propõe dois conjuntos: o
do ser (sujeito) e o do Outro (sentido). O que
está em jogo é uma escolha forçada entre o ser e o sentido. O sentido remete ao
Outro da linguagem na qual o sujeito se constitui. Se o sujeito escolhe “ser”,
ou seja, escolhe não se alienar no campo do Outro, ele não se constitui. Mas, se escolhe o “sentido”, se aceita alienar seu
desejo no desejo do Outro, ele pode advir como sujeito.
Quando falamos aqui de “escolha”, não se trata de uma escolha deliberada;
diz respeito a algo da ordem inconsciente, mas ainda sim constitutiva, no qual
o sujeito se faz responsável também por ela.
Ao escolher o sentido,
entretanto, há a perda do ser, pois o
sujeito advém em outro lugar e não de si mesmo. Por isso, em psicanálise, não
lidamos com o ser, nem falamos em essência no ser humano. Assujeitar-se ao
Outro implica necessariamente na perda de si mesmo. Nesse sentido, o sujeito
($) surge em sua falta-a-ser como efeito do significante. Por outro lado, ao se
assujeitar ao Outro, a criança se torna um sujeito da linguagem. Precisamente, Lacan (1998 [1964]) nos oferece o seguinte
esquema como chave de leitura para a alienação:
Fonte: LACAN, Jacques. Seminário,
o livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964).
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 200.
A alienação implica na
lógica da reunião, na qual está em jogo uma escolha que tem por consequência: nem um; nem outro. Para metaforizar o que se passa na alienação, Lacan
(1998
[1964]) diz se tratar de uma escolha imposta tal como a de
um assaltante: “A bolsa ou a vida! Se
escolho a bolsa, perco as duas. Se escolho a vida, tenho a vida sem a bolsa,
isto é, a vida decepada.” (1998 [1964], p. 201) Ou seja: escolhendo-se a bolsa (o ser / ser por ele
mesmo), a vida é perdida e o sujeito fica impossibilitado de se constituir, caindo
no não-senso. Por outro lado, escolhendo a vida (o sentido), este só subsiste
decepado e algo é perdido. Dizer que o sentido só existe decepado, partido, é
apontar que o humano se constitui dividido, marcado pelo Outro, tendo um saber
e um não saber sobre si mesmo, sendo isto a dimensão do inconsciente no
sujeito.
A alienação, portanto, vem
demarcar que nenhum falante existe sem a relação com o Outro e que ele
inicialmente se situa como objeto do desejo desse Outro. Todavia, a
constituição subjetiva não se reduz a uma total alienação, visto que requer
também uma “separação”. Esta salienta a tentativa do falante de se “separar”,
sair do lugar de objeto e assim, realmente assumir a condição de sujeito
desejante, logo, faltoso. Na separação, o Outro não é o mesmo que o Outro da
alienação. Ele aparece barrado, também faltoso, de modo que não é capaz de nomear
completamente o ser do sujeito. Nesse sentido, conforme indica Lacan (1998
[1964]), na separação está em jogo o recobrimento de duas
faltas: a do sujeito e a do Outro.
Dizendo de maneira distinta, o
encontro com a falta do Outro, com o desejo do Outro, abre ao sujeito a
possibilidade de se identificar com esta falta e ocupar, inicialmente, o lugar
do objeto da falta do Outro. É a maneira como o sujeito tenta inicialmente se
situar diante do desejo enigmático do Outro. Sobre isso, Lacan comenta:
“Nos intervalos do discurso do Outro, surge na experiência da criança, o
seguinte, que é radicalmente destacável – ele
me diz isso, mais o que é que ele quer?” (1998 [1964], p. 203 ) Nisto, o sujeito constata que essa relação é
marcada por um desencontro, ou seja, o Outro deseja além dele, o Outro é
barrado, dando sinais de sua incompletude e falibilidade. A criança não é capaz
de tamponar o desejo do Outro. Isso permite ao sujeito, sair do lugar de objeto
e escolher pelo desejo, situando-se como sexuado, através de identificações que
lhe marcam.
Nos
termos lacanianos, a separação diz de uma operação de interseção. Por outro
lado, Lacan considera que na interseção entre o sujeito e o Outro, não há nada,
o lugar está vazio – lugar este que será ocupado pelo objeto a, objeto causa de desejo. Isto é:
diante da operação que se expressa na separação, o que temos é uma divisão (do
sujeito e do Outro), que tem como resto o objeto a. Sobre o objeto a, Lacan é preciso: “Na medida em que ele é a sobra, por assim
dizer, da operação subjetiva, reconhecemos estruturalmente neste resto, por
analogia de cálculo, o objeto perdido.” (2005 [1962-63], p. 179) O objeto a releva, assim, ser o último indício de
uma unidade hipotética entre o sujeito e o Outro, de uma satisfação mítica,
sendo por meio de uma relação com ele que o sujeito constrói sua fantasia, $◊a (Sujeito dividido em relação ao objeto
a). Trata-se, contudo, de uma
fantasia de completude, apontando para o lugar que ele supõe estar em relação ao
desejo do Outro.
Ao final desse processo,
podemos dizer que o sujeito não se encontra nem completamente alienado, nem
completamente separado, mas amplamente afetado pelos efeitos do discurso –
sendo condição de sua possibilidade de constituição.
DESCOLONIZANDO
O CAMPO DO OUTRO
Por vezes, há uma tendência
a pensar o Outro reduzido as figuras parentais. Contudo, no ensino lacaniano, o
Outro não é propriamente uma pessoa,
ainda que a constituição do sujeito dependa de um desejo
particularizado, “implicando a relação com
um desejo que não seja anônimo.” (LACAN, 2003 [1969], p.
369). Mesmo
que o Outro fosse igualado a mãe e/ou o pai, seria preciso levar em conta que
os pais se inscrevem em uma dado contexto sócio cultural e são marcados pelo o
que ocorre em sua época – o que repercute naquilo que transmitirá ou não à
criança.
Para Lacan, o Outro
comporta de maneira mais ampla a ideia de tesouro dos significantes, um campo
da linguagem, um corpo social, uma rede, no qual o sujeito é mais pensado do que
efetivamente se pensa. É por meio dele que estruturam as determinações
simbólicas da história do sujeito, no qual se inclui o desejo do Outro, a lei,
a ordem cultural, a história e os traços fundamentais da civilização.
Se
o Outro traz também a marca da cultura e dos efeitos do laço social, faz-se
necessário pensar de forma mais abrangente de que “campo do Outro” estamos
falando quando levamos em conta as particularidades dos sujeitos que nascem no
Brasil. Essa localização não é irrelevante. Promover essa interrogação é
fundamental para não continuarmos tomando o sujeito pautado no universal
eurocêntrico – o que nos leva também a nos aproximarmos da produção de
subjetividade que engendra a constituição subjetiva dos brasileiros.
Primeiro
ponto a considerar é que o brasileiro é um povo tecido a
partir de um tenso encontro entre três povos: indígenas, portugueses e
africanos. Ao mesmo tempo, não somos europeus, nem africanos, nem indígenas.
Aquele considerado no Brasil como “branco” não é branco aos olhos dos europeus
e o “negro” não é africano para os africanos. Por outro lado, forjar uma
identidade fruto dessa mistura de três povos também não é capaz de nomear o que
seria mais particular da nossa cultura. Pelo contrário, se há algo mais característico,
seria o fato de que – nós,
brasileiros – tendemos a reinterpretar essas influências e diferenças,
com uma forma paradoxal de lidar com a diversidade cultural, que ora é
desprezada, ora é exaltada.
Procurando localizar o povo
brasileiro, Lélia Gonzalez nos lembra que a construção do nosso território não
é fruto somente da influência européia, mas de uma construção mais plural.
Precisamente, ela aponta que somos uma “América Africana cuja latinidade, por
inexistente, teve trocado o t pelo d para, aí sim, ter seu nome assumido
com todas as letras: Améfrica ladina”
(2019 [1992-93], p. 341). Isso a leva a situar que todos os brasileiros são ladino-amefricanos e não somente os
negros. Todos nós somos atravessados e influenciados por uma dinâmica cultural
africana, mas construída a partir de uma experiência particular dos afrodescendentes na América. Por outro lado, por
denegarmos tal condição de amefricanidade, o racismo à brasileira se volta
justamente contra aqueles que a testemunham: os negros.
Sobre essa dinâmica
cultural, uma outra consideração pertinente seria pensar nossa própria língua.
Seguindo ainda Gonzalez (2019 [1992-93]), aqui se fala o “pretoguês”. Este diz
respeito a marca da africanização no português, que inclui o caráter tonal e
rítmico das línguas africanas. Seria o pretoguês
nossa língua materna, com traços de lalíngua?
Apoiando-se em Gonzalez, Marcus André Vieira afirma que sim. Em seus termos:
O
pretoguês é o português que se deixa atravessar pelo que de sua história foi,
mais que rechaçado, estraçalhado. Suas marcas, porém, estão no ar, na argamassa
do que nos constitui. Somos filhotes da cultura, feita não apenas do que se vê
e sente, mas também do que se pressente na ponta da língua, desses restos
linguageiros que Lacan chamou lalíngua. (2021, s/p).
Resumindo, nossa cultura,
nossa língua, nossa arte, nossa organização religiosa, na qual podemos
localizar aspectos do campo do Outro é fortemente influenciado pelos traços do
povo africano. Ao mesmo tempo, essa influência é recusada, silenciada, como uma
verdade que precisa ser ocultada e invisibilizada. Se ela é ocultada, isso tem
relação com o racismo estrutural e com um discurso dominante que busca promover
a manutenção de toda uma desigualdade social que retoma nossa longa tradição
escravocrata. Esse discurso dominante teve inclusive a força de promover o mito
da democracia racial, contribuindo para que o racismo permanecesse denegado,
constituindo-se “como a sintomática
que caracteriza a neurose cultural
brasileira.” (GONZALEZ, 2019 [1984], p. 238, grifo da autora) . Ou seja,
nossas formações do inconsciente são atravessadas pelo modo como o racismo em
sua face denegada comparece em nosso país, pois, como afirma Marie-Hélène
Brousse (2003), o inconsciente tem
relação com o laço social.
APONTAMENTOS
CLÍNICOS SOBRE A CONSTRUÇÃO SUBJETIVA DOS NEGROS NO BRASIL: EFEITOS DO CAMPO DO
OUTRO
A psicanalista Isildinha
Nogueira (1999) afirma que a sociedade
estabelece sobre os corpos seus sentidos e valores – o que a leva formular qual
o lugar do corpo negro a partir dessa definição. Ou seja, por um passado histórico de duradoura
escravização, o corpo negro é desumanizado e impregnado pelo sentido de “peça”,
“mercadoria”, “coisa”, que se presentifica na memória social e atualiza o
preconceito racial. (NOGUEIRA, 1999) Além disso, ao negro, é relegado as mais
variadas representação depreciativas, sendo seu corpo e seus traços fenotípicos
(pele, cabelo, nariz e boca) o alvo de uma hierarquização estética em relação aos brancos, sempre acrescida da
inferioridade a nível intelectual e moral. Jôse Sales (2019) pontua, nesse
sentido, que essa desvalorização promove uma série de dificuldades no campo da
corporeidade, chegando a uma relação persecutória com o corpo, de controle e
observação, com o intuito de se moldar ao branco.
Com Lacan (2003 [1972a]),
podemos dizer que, se o corpo negro é alçado a esse lugar, isso tem relação com
o racismo de discurso. Mais ainda, ele afirma que todo suporte do discurso é o
corpo (LACAN, 2012 [1972b]) – o que nos leva a entender que é pelo discurso que
as pessoas negras têm seus corpos aprisionados, petrificados em posições
sociais e lugares simbólicos, com o objetivo de conservá-los na condição de
subalternizados. Não obstante, considera Lacan, o discurso é aparelho de gozo
e, ao tocar o corpo, produz modos de gozo e modos de viver a pulsão – sendo
este ponto uma via para pensar as consequências psíquicas do racismo sobre a
construção subjetiva dos negros, juntamente com todo sofrimento que ele
acomete.
Sobre
o impacto dos discursos racistas para a população negra, o psiquiatra
martinicano Franz Fanon
(2008 [1952]) em seu livro Pele negra,
máscaras brancas considera que eles promovem uma “alienação psíquica do
negro”, na medida em que a pessoa negra é forçada a usar a língua do
colonizador, seus costumes, mimetizando seu opressor e buscando alcançar o
branqueamento da raça. Deivison Faustino (2018) situa que o problema levantado
por Fanon reside no fato da cultura europeia ser ideologicamente igualada a
expressão universal de civilização, humanidade e educação, de modo que o
colonizado é forçado a negar sua condição sócio histórica para se vincular ao
universo do colonizador e, com isso, ser reconhecido como humano.
Vale
considerar que apesar de Lacan e Fanon usarem o termo “alienação”, há uma
distinção quanto ao uso que os autores fazem do mesmo. Para Lacan, a alienação
é constitutiva de todo sujeito, no qual ele também inclui a separação; enquanto
que o objetivo de Fanon é descrever um modo particular de alienação subjetiva
que acontece com as pessoas negras submetidas ao processo de colonização. Isso,
porém, não faz essas construções necessariamente excludentes. Pelo contrário,
com Fanon, somos justamente levados a refletir que, se a alienação é
constitutiva para Lacan, o fato de o sujeito estar inserido em uma sociedade
colonial e racista levanta outros problemas que precisamos considerar de modo a
não alimentarmos o branco europeu como sinônimo de universal – proposta
empreendida por esse trabalho. Ter um
corpo negro comporta diferenças, não por uma questão biológica, mas porque este
é banhado por discursos racistas.
Precisamente,
Fanon (2008 [1952]) chama a atenção para uma série de questões subjetivas da
pessoa negra ao viver em uma sociedade colonial. Por exemplo, ele aponta como a
dialética hegeliana não é capaz de ser verificada nesses casos. O negro chega ao mundo desejando
reconhecer-se como sujeito, mas o que lhe é revelado é a sua objetificação, seu
não-lugar nesta condição. Se o branco é o universal, o negro é alçado a um
lugar de exceção ao humanismo branco europeu. Diante disso, para ser
reconhecido como humano, a pessoa negra passa a desejar ser branco, negando sua
negritude ao usar uma “máscara branca”. Contudo, isso é inoperante, pois jamais
alcança tal reconhecimento. (FANON, 2008 [1952])
O
negro permanece, assim, sem conseguir se inserir no mundo dos brancos e com
dificuldades de assimilar sua negritude. Daniele
Menezes at al (2020) pondera que a cultura ensina o negro a se embranquecer e
se domesticar, seja tratando-o como incivilizado, violento e ameaçador, seja promovendo a ideia de quanto menos ele se
apresentar negro, mais ele pode desfrutar do mundo dos brancos. Segundo Faustino (2018), na perspectiva de
Fanon, o colonizado não se submete a essa condição somente porque é
subjetivamente alienado, mas porque essa alienação é tão poderosa que não há
outra possibilidade de ser humano que não seja sendo branco. Sales (2019)
comenta ainda que ir em direção à brancura para ser reconhecido como humano
trata-se, portanto, de uma tática para escapar da violência do racismo.
Neusa
Santos Souza (1983), por sua vez, no seu livro Tornar-se negro considera que a pessoa negra acaba sendo forçada a
construir de um “Ideal de Eu branco”. Se isso ocorre, é devido ao fato do
sujeito receber muito precocemente mensagens negativas sobre ser negro – o que
pode acarretar uma série de dificuldades para tomar o corpo e a pele negra como
objeto de investimento amoroso e, consequentemente, para a formação do seu
narcisismo. O que remete a negritude, notadamente
em seu corpo, ganha contornos pejorativos e o sujeito como um todo tende a ser
engolido por essa engrenagem. A brancura
torna-se, assim, o modelo a ser
alcançado, o próprio ideal do negro, mas não sem o preço de perceber-se sempre não
podendo atingi-lo. Como consequência, Souza
(1983) observa casos de autodesvalorização, conformismo, atitudes fóbicas, submissão,
intimidação e decepção consigo próprio por não responderem ao ideal de brancura
não importando os êxitos que o sujeito possa ter alcançado.
Convém ressaltar, conforme
pondera Freud, que o sujeito nunca está a altura de seu ideal, nunca consegue
atingi-lo, seja ele branco ou negro. A situação torna-se altamente complexa
quando esse ideal é muito distante e a instância do supereu, em sua face tirânica
e sem limites, impõe ao sujeito alcançá-lo e por isso ser impossível,
castigá-lo pela via do sentimento de culpa. (SOUZA, 1983) Por outro lado, sobre
os efeitos do ideal de brancura, Sales argumenta: “Não se trata aqui de uma
insatisfação neurótica, onde o ideal fica no horizonte, mas de uma acentuada
defasagem entre o que é e o que se almeja.” (2019, p. 110)
É, nesse sentido, que Souza
pensa as consequências psíquicas do racismo sobre os negros para além de todas
as tramas singulares de sua história de origem. Tem algo do corpo social que
incide sobre o corpo próprio, com repercussões subjetivas, no campo do desejo,
no circuito pulsional que pode levar a pessoa negra a se identificar e
assimilar os discursos racistas fruto de um Outro cruel, levando-a ao pior.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
O esforço empreendido por essa discussão foi apresentar os conceitos de
alienação e separação proposto por Lacan a partir de uma perspectiva crítica a
respeito do campo do Outro. Pensar a constituição dos sujeitos brasileiros é
levar em conta nosso contexto sociocultural, no qual a forma paradoxal de reinterpretação
das influências e diferenças dos três povos que nos compõem não podem ser
desprezadas, sendo o racismo um ponto marcante de nossa história. Isso,
portanto, nos permite compreender que nascer negro no Brasil traz dificuldades
distintas na medida em que se é bombardeado por discursos racistas – o que pode
implicar em estar mais submetido e alienado aos seus efeitos devastadores na
medida em que promovem o ideal de brancura e sofrimentos em torno de uma
decepção em relação a si próprio, como foi possível extrair do pensamento de
Fanon e Neusa Souza.
Por outro lado, se há essa
alienação constitutiva, pois só se advém como sujeito dessa forma, há também a
possibilidade de separação. Alienação e separação são operações lógicas articuláveis
na psicanálise – o que permite concluir que os significantes, os discursos, nos
quais o sujeito encontra-se capturado não são capazes de recobrir todo o seu
ser, abrindo espaço e possibilidade de separação dos seus sentidos
mortificadores e devastadores.
Separar-se desses discursos – especialmente quando ele tem um tom racista
que captura o corpo – inclui um árduo trabalho, mas sempre singular: seja pela
análise pessoal, pela arte, pela escrita, pela política, entre outros, de modo
que cada sujeito precisará inventar sua maneira. Isso não exclui, contudo, que
a sociedade se coloque também responsável por esse trabalho, pois promover a
dissolução dos discursos e práticas racistas é atacar o cerne do problema e
sanar as modalidades de sofrimento que ele acarreta para as pessoas negras no
Brasil.
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