Flavia Bonfim
*Artigo publicado na Revista Iteração - Revista da Escola Brasileira de Psicanálise - Delegação Maranhão, volume 3, 2016
O encontro do analista com a criança autista revela de maneira radical a dimensão da clínica do particular, do caso a caso, postulado pela ética psicanalítica. Qualquer enquadramento revela o seu fracasso e inevitavelmente o não-saber se faz presente nessa clínica. Apesar disso, a psicanálise nos oferece balizas teóricas importantes que permitem ao analista encontrar uma direção de tratamento para escutar aqueles que, não falando, revelam sua posição frente à linguagem.
O termo autismo foi inicialmente introduzido por Bleuler para descrever uma condição da esquizofrenia no qual há uma perda do contato com a realidade que tem como consequência a dificuldade de comunicação. Contudo, foi a partir das observações do psiquiatra austríaco Leo Kanner que pela primeira vez pensou-se em uma condição mais precoce, denominada autismo infantil. Assim, em 1943, ele descreveu o autismo como uma síndrome caracterizada pelo isolamento extremo desde o início da vida e uma necessidade de imutabilidade no ambiente. Além disso, observou outros comportamentos peculiares, a saber: desvio do olhar, dificuldade na linguagem e na alimentação, estereotipias e ecolalia. Kanner, por sua vez, após sua pesquisa clínica, chegou à conclusão que o autismo não se tratava de um déficit cognitivo, nem uma questão de surdez. (RIBEIRO, 2005)
Chegar a essas conclusões iniciais abriu, contudo, um campo para muitos outros questionamentos, sobretudo, a respeito da(s) causa(s) do autismo. Herança genética? Determinismo psíquico? Fatores ambientais? Teorizações se difundiram, inclusive no meio psicanalítico, em torno de uma culpabilização da mãe decorrente da sua falta de investimento no filho, por uma precariedade no que corresponde ao olhar do Outro. Se é possível constatar algo dessa ordem em algumas relações entre as mães com seus bebês, essa teoria, contudo, mostra-se reducionista e não consegue abarcar a complexidade dos mais variados casos. O terreno de hipóteses sobre a causalidade do autismo continua assim nebuloso, todavia, a relação específica do autista com a linguagem é bastante peculiar e não convém ser desprezada.
Ansermet (2003) avança nesse debate na medida em que considera que, mesmo sendo possível chegar a uma conclusão a respeito de uma base orgânica do autismo, isso não esclarece e nem determina qual será a forma do sujeito responder ao que se passa em seu organismo, pois nesse plano só há respostas singulares – sendo, estas respostas, que interessam ao analista. Ele diz ainda: “Pela linguagem, somos levados além das leis do organismo, além da natureza e das determinações biológicas. De todo modo, é isso que a psicanálise tenta explorar, pensar, explicitar; ela visa a um teoria do sujeito e das condições de sua assunção.” (ibid., p. 82)
Ribeiro (2005) nos orienta a pensar o autismo não como uma perturbação na relação mãe-bebê ou déficit de interação na relação com os pais, mas sim, como uma resposta singular do sujeito ao que se articula no campo do Outro. Uma resposta que se estrutura por uma recusa a alienar-se na linguagem. “O autista seria aquele que permaneceu congelado no processo de sua assunção subjetiva.” (ANSERMET, 2003, p. 81) É preciso considerar que o campo do Outro é uma construção, não é dado desde sempre e precisa ser ordenado pela linguagem. No autismo, o Outro aparece para o sujeito como sem sentido, excessivo e intrusivo. Logo, um Outro real.
Para situar-se como sujeito, é imprescindível submeter-se à linguagem e uma recusa dessa ordem, gera uma série de impasses para o autista colocar-se no mundo, provocando seu fechamento no laço social e situando-o fora do discurso. É preciso demarcar que os autistas não estão no período pré-verbal, sendo tal formulação uma visão desenvolvimentista da linguagem. Lacan, na Conferência de Genebra sobre o sintoma (1998 [1975]), assinala que os autistas estão na linguagem e tampam seus ouvidos justamente para se “defenderem do verbo”, visto que falar é demandar e é disso que eles se esquivam.
Como consequência dessa relação singular com a linguagem, Lacan (ibid.), destaca que é a mãe que fala à criança, mas é necessário que a criança a escute. Aponta isso, então, para afirmar que os autistas escutam a si mesmos. Lacan diz ainda que eles ouvem muitas coisas, todavia, eles não conseguem escutar o que temos para dizer-lhe enquanto nos ocupamos deles. Essa, então, passa a ser uma importante orientação clínica que podemos recolher do próprio Lacan. Qualquer intervenção que vise estimular e demandar que a criança brinque ou fale, feita também com uma presença muito maciça por parte do clínico, mostra-se invasiva e inoperante.
Mais ainda, Lacan conclui que o fato de ser difícil escutá-los não exclui que há algo a lhe dizer. É também nessa conferência que Lacan afirma que não se pode dizer que os autistas não falam, ainda que seja difícil entendê-los, visto que eles são bastantes verbosos. Segundo Maleval (2007), a verborragia é uso da língua sem enunciação, sem afeto, sem manifestação da expressividade do sujeito; uma fala sem dizer. Tem, portanto, uma função tranqüilizadora, pois impõe uma distancia à voz.
Essa distancia à voz, bem como a recusa do olhar, aparecem em consonância com a rejeição mais geral do autista frente ao desejo do Outro. Essa recusa pode ser entendida a partir dos entraves que se colocam em seu circuito pulsional. Na estruturação desse circuito, algo é sempre perdido, correspondendo a extração do objeto. Quando isso não ocorre, os objetos da pulsão aparecem de forma avassaladora para o sujeito, retornando nas bordas corporais. Laurent (2012) destaca que isso que retorna nas bordas corporais diz repeito a um gozo inassimilável que invade a criança, entendido como fenômenos de borda e devendo ser tomado como um acontecimento de corpo específico na clínica do autismo.
A pulsão oral, anal, vocal, escópica e fálica articulam o campo da demanda e do desejo. São, portanto, objetos de troca na relação com o Outro. Como esse Outro tem o estatuto de real, é neste campo que emergem as respostas autísticas. Trata-se assim, de questões em torno da demanda, do dar e receber. É comum os autistas terem rituais para comer e problemas de reter/soltar as fezes, pois o alimento e as fezes não estão no registro da necessidade, mas da demanda oral e anal, respectivamente. Há também a disfunção na percepção sonora e visual – pontos onde estão em jogo o objeto vocal e escópico. Assim, observa-se uma dificuldade a nível dos órgãos sensoriais sem que estes estejam comprometidos.
Maleval (2007) afirma que os autistas se protegem da emergência angustiante do objeto voz na medida em que a enunciação sustenta o gozo vocal no campo da linguagem. Na tentativa de evitar a enunciação, o recurso da ecolalia e o uso particular que fazem da língua na verborragia implicam em uma fala, mas com a condição de não dizer; uma fala sem endereçamento ao interlocutor. Não é à toa também que verificamos nos autistas que falam, a utilização da linguagem de uma forma original, com voz artificial e sem expressividade; ou ainda um modo de falar para não ser compreendido, que repete termos decorados e com dificuldades de expressão pessoal. Por outro lado, podemos observar nessas crianças o gosto pela música. A música introduz um ritmo ao mesmo tempo que a voz aparece mais desarticulada do afeto.
Além do uso particular da linguagem, constatamos nos autistas a presença de estereotipias e a fixação em certos objetos. Segundo Ribeiro (2005), esses comportamentos funcionam como um tratamento para o excesso de gozo não localizado que invade a criança partir desse Outro real, visando conter a angústia. A estereotipia é uma construção para regular o Outro. Ainda que seja difícil de compreender, esses comportamentos possuem uma lógica, ou seja, trata-se de uma tentativa de furar o Outro. Os objetos autísticos, por sua vez, variam dos mais precários até aqueles que ganham estatuto de objetos que permitem algum laço social. Já o ritual ou necessidade de imutabilidade no ambiente é uma tentativa de por ordem o mundo que para o autista é caótico. Diante disso, podemos propor que as estereotipias, os objetos autísticos e a dificuldade com mudanças em sua rotina, são recursos que o autista encontra para lidar com o que se coloca invasivo e excessivo.
O tratamento, portanto, não deve visar eliminar tais comportamentos, mas seguir o autista em seu trabalho de furar o Outro, entendendo que será a partir de seus objetos que algum laço social poderá ser promovido e lhe permitirá encontrar uma maneira singular de estar no mundo. Lacan nos ensinou que é fundamental trabalhar com eles, sem se ocupar deles. Assim, podemos apostar em um trabalho no qual o analista se oferece como parceiro, acompanhando o sujeito em suas invenções originais que já são uma tentativa de lidar com a angústia. Acompanhar seu movimento e aprender sua lógica abre caminho para intervir sem invadir. Mais ainda, é fundamental que o clínico se coloque como presente-ausente e evite situar-se como Outro da demanda, sendo uma via o uso da enunciação com falas indiretas, cantadas, murmuradas de modo a esvaziar o horror experimentado com a voz.
Vale destacar, conforme nos indica Maleval (2012), que dos autistas que conseguiram expressar sua opinião sobre os tratamentos a que foram submetidos, nenhum deles relatou ter sido beneficiado pelos métodos de aprendizagem, mas sim por métodos originais. Os que mais lhe auxiliaram foram os tratamentos que não retiram os objetos autísticos, seu comportamento estereotipado ou rituais, tentando submetê-los a uma norma regida por valores e ideais sociais, dos seus pais ou terapeutas. Temple Grandim, uma autista de alto nível, é um bom exemplo nesse sentido. Em suas palavras: “as pessoas que mais me ajudaram foram sempre as mais criativas e as menos ligadas a convenções” (apud MALEVAL, 2012)
Podemos concluir que o tratamento do autista deve supor que há um sujeito justamente onde ele não pôde advir. Portanto, não se trata de intervir para que os fenômenos apresentados por essas crianças sejam transformados, mas é abordá-lo almejando uma retomada subjetiva. (ANSERMET, 2003)
REFERÊNCIAS:
ANSERMET, Francois. A clínica da origem: a criança entre a medicina e a psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2003.
LACAN, J. Conferência de Genebra sobre o sintoma (1975) In: Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: Editora Eólia, n. 23, 1998.
LAURENT, E. O que nos ensinam os autistas. In: MURTA, CALMON & ROSA (Orgs.). Autismo(s) e atualidade: uma leitura lacaniana. Belo Horizonte: Scriptum livros, 2012.
MALEVAL, J. “Sobretudo verbosos” os autistas. In: Latusa 12 – Objetos soletrados no corpo. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise. Rio de Janeiro, 2007.
RIBEIRO, J. A criança autista em trabalho. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005.