O QUE NOS
ENSINA O FORT-DA
SOBRE O BRINCAR
EM ANÁLISE? *
*Artigo publicado na Revista Marraio, número 32-33, Rio de Janeiro, 2017
RESUMO: Este artigo visa apresentar o
jogo Fort-Da presente no texto de
Freud Além do princípio de Prazer e
ampliar sua discussão a partir da leitura de Lacan sobre a compulsão à
repetição. Tal consideração lacaniana nos leva a tomar o brincar em análise
como linguagem e discurso determinado pela insistência da cadeia significante,
mas também como ato da ordem do encontro com o real, na medida em que através
da brincadeira a criança expressa o traumático, seu mal-estar e sofrimento.
Nesse sentido, podemos tomar o brincar como um saber-fazer diante dos impasses
que se colocam em torno sua existência .
Palavras-chaves:
Fort-Da. Brincar. Repetição. Real.
Nada mais exemplar ao falar do
brincar na criança do que nos reportarmos ao
Jogo do Fort-Da, apresentado no texto freudiano Além do princípio de Prazer (1920). Contudo, esta não é a única contribuição de Freud a respeito da
função da brincadeira, tendo em vista que no artigo “Escritos criativos e
devaneios” de 1907, ele também faz uma consideração sobre os motivos que levam
uma criança a brincar. É, portanto, partindo desses apontamentos e retomando a
leitura lacaniana sobre o Fort-Da a
partir da compulsão a repetição, que procuro delimitar a função do brincar em
análise.
As
observações de Freud sobre o brincar
No
texto “Escritos criativos e devaneios”, Freud (1907) nos lembra que a ocupação
favorita e mais intensa da criança é o brincar, identificando que nessa
atividade ela se comporta como um escritor criativo, na medida em que cria seu
mundo próprio reajustando os elementos do seu exterior de uma forma que seja
mais prazerosa. Assim, como destacam Oliveira & Fux (2014), Freud coloca o brincar ao lado da criação
artística.
A contrário do que se poderia
supor, diz Freud (1907), a criança leva muito a sério sua brincadeira e nela
mobiliza muita emoção, sabendo a distinguir da realidade. Sendo assim, o
brincar não se opõe ao que é sério, mas ao que é real. Real, aqui, não na
conceituação lacaniana desse termo, mas no sentido de realidade.
O
brincar tem tanta importância na constituição psíquica que a medida que a
criança cresce e interrompe suas brincadeiras, um substituto advém em seu
lugar: a fantasia. Tal consideração,
sustenta Freud (ibid.), fundamenta-se ainda no fato da dificuldade humana em
renunciar a um prazer experimentado, tendo em vista que procurará de todas as
formas um substituto, podendo encontrar prazer não somente no fantasiar, mas
também no humor, na escrita, enfim. Diferentemente de um adulto que se
envergonha e esconde muitas vezes suas fantasias por serem infantis e
proibidas, a criança não oculta sua brincadeira e nem procura esconder seu
conteúdo. Ainda sobre os jogos infantis, Freud escreve:
O brincar da criança é
determinado por desejos: de fato, por um único desejo – que auxilia o seu
desenvolvimento - , o desejo de ser grande e adulto. A criança está sempre
brincando ‘de adulto’, imitando em seus jogos aquilo que conhece da vida dos
mais velhos. Ela não tem motivos para ocultar seu desejo. (1907: 137)
Oliveira & Fux (2014) assinalam
que a primeira definição de Freud sobre o brincar se sustenta no principio do
prazer, conservado na fantasia, que se manifesta com mais liberdade quando não
articulado ao princípio de realidade, no qual o desejo de ser grande mostra-se
como fio condutor.
Contudo, quando levamos em
consideração a dimensão do brincar com o desejo de ser grande e o fato de na
brincadeira a criança imitar os adultos a sua volta, podemos verificar como elas
reproduzem em análise (algumas de formas mais diretas outras nem tanto) através
de falas, condutas e com histórias, situações do seu cotidiano e expressam
assim as problemáticas de sua estrutura familiar e os impasses no qual se vê
incluída. Isso, portanto, coloca em cheque a explicação do brincar unicamente pela
via do princípio do prazer e não é a toa que Freud pensou essa atividade
infantil também a partir da compulsão a repetição e sua articulação com o
traumático.
É, nesse sentido, que em suas
observações sobre o brincar, podemos recolher de sua obra o famoso jogo do Fort-Da, no qual se pôde verificar, como
observam Oliveira & Fux (ibid.), que a fantasia não é tão evidente para
associar esse jogo à dimensão da arte, estando mais ao lado dos “neuróticos de
guerra”, do trauma, por assim dizer. Vale lembrar que no texto “Além do principio do prazer”, de 1920,
Freud apresenta argumentos que promovem sua reformulação sobre o funcionamento
psíquico não mais regulado exclusivamente pelo principio do prazer, tomando os
sonhos traumáticos dos neuróticos de guerra, a compulsão a repetição e o
brincar como exemplos para sustentar sua nova teorização.
Freud (1920) extraiu este jogo a partir da
observação do brincar de seu neto, constatando que o menino realizava através
da brincadeira a repetição de uma experiência vivida como desprazer, que era a
ausência de sua mãe. O neto de Freud, então, jogava o carretel e emitia o som
de “ôoo..”, que Freud identificou como a palavra alemã Fort (embora, longe, ausente); e quando o puxava de volta,
alegremente dizia “aaa..”, identificado como Da (aí, aqui). Na
perspectiva freudiana, esse jogo diz respeito a uma brincadeira de
desaparecimento e retorno, que faz referência a ausência e presença materna.
Para Freud (ibid.), a ausência da
mãe colocava-se para a criança como uma experiência passiva, na qual o menino
estava sendo submetido, contudo, com a repetição da experiência no jogo ela
assumiu um caráter mais ativo. Nesse sentido, o jogo do Fort-Da reproduziu o que foi tomado como impactante para criança,
que no caso do neto de Freud foi ter que suportar a ausência materna sem se
queixar. Nas palavras de Freud: “É claro que em suas brincadeiras as crianças
repetem tudo o que lhes causou uma grande impressão na vida real, e assim
procedendo, ab-reagem a intensidade da impressão, tornando-se por assim dizer,
senhoras da situação.” (1920: 27) O fato de ainda assim ser possível verificar
uma cota de prazer nos jogos infantis permitiu a Freud concluir que a brincadeira
pode estabelecer uma convergência entre o principio do prazer e a compulsão à
repetição.
A leitura lacaniana sobre o Fort-Da a partir da compulsão a
repetição
Oliveira & Fux (2014)
ponderam que na brincadeira do Fort-Da o
que se evidencia é que mais do que a busca o prazer – primeira proposição
freudiana sobre o brincar – visto que,
na verdade, o aparelho psíquico visa nesse jogo a repetição. Repete-se tendo em
vista a dificuldade do neto de Freud em lidar com o real – o inominável, sem representação, do que não
cessa de não se inscrever – da perda de
objeto que resiste a ser simbolizado, tal como a experiência do neurótico de
guerra em poder representar o real da própria morte.
A compulsão à repetição é
abordada por Lacan no Seminário 11 pela
via do Autômaton (via
simbólica) e tiquê (via real) e é
também no capítulo dedicado a esta discussão que ele retoma o jogo do Fort-Da. Autômaton e Tiquê são termos que Lacan recolhe de
Aristóteles para discutir a questão da repetição. Tiquê pode ser traduzido impropriamente, segundo Lacan, como “sorte,
fortuna” e autômaton, como “acaso,
causalidade”. Ambos são tomados por Aristóteles como “causas acidentais das
coisas”, pois para ele existem coisas que acontecem sempre, coisas que
acontecem na maioria das vezes e coisas que acontecem excepcionalmente – sendo estas o estatuto do tiquê e autômaton.
O autômaton é o acaso que
diz respeito a algo do retorno, daquilo que se move por si mesmo, no qual não
se pode determinar por não haver leis de causa e efeito; não há como predizer.
Tem relação com os seres da natureza, com o inanimado, como por exemplo, um
cavalo que foge do estábulo e retorna antes que a tempestade chegue. Já o tiquê é tomado como um acaso do registro
da sorte, de um encontro feliz ou não, mas que depende da ação humana. Um
exemplo disso seria ganhar na loteria. Ser o ganhador é questão de sorte, mas é
algo que só acontece se a pessoa jogar. É, portanto, a dimensão do retorno no autômaton, e do encontro no tiquê, que Lacan procura extrair para
discutir o tema da repetição, porém concedendo outra dimensão.
Assim, o ensino lacaniano nos orienta e reforça a tomar o tema
repetição não por intermédio da transferência, do acting out – como é possível extrair do texto freudiano “Recordar,
repetir e elaborar”, tendo sido essa dimensão privilegiada entre os
pós-freudianos –, mas levando em consideração os avanços de Freud a partir de
suas formulações sobre o “além do principio do prazer”. Sobre isso, ele nos diz:
Assim, não há como confundir a repetição nem com o retorno dos signos,
nem com a reprodução, ou a modulação pela conduta de uma espécie de rememoração
agida. A repetição é algo que, em sua verdadeira natureza, está sempre velado
em análise, por causa da identificação da repetição com a transferência na
conceitualização dos analistas. Ora, é mesmo esse o ponto a que deve dar
distinção. [...] Esta ambiguidade da realidade em causa na transferência, só
podemos chegar a desembrulhá-la a partir da função do real na repetição. (1998 [1964]: 56)
E qual é a função do real na repetição? A função é justamente
reiniciar o processo da repetição. O tema da compulsão à repetição e as
construções teóricas que a permeiam acompanham o movimento da clínica no
sentido que vão do simbólico em direção ao real. Uma dimensão da noção de repetição traz
relação com o simbólico, com o retorno dos signos, de algo que se move por si
mesmo, que gira em torno de si mesmo. É, nesse sentido, que Lacan situa o autômaton enquanto a insistência
automática da cadeia significante, uma seriação automática, que visa uma
satisfação pulsional e, portanto, responde ao princípio do prazer. Todavia,
nesse retorno, há sempre um resto e é por isso que ele não cessa. É justamente
o resto que causa a repetição, pois o que faz a cadeia significante é girar em
torno desse núcleo real, sem representação, inominável. Assim, na repetição há
sempre um resto que constitui a causa, sendo por isso que Lacan toma o tiquê como o encontro faltoso que sempre
reinicia o processo e instaura novamente a repetição. A partir dessa
perspectiva é possível verificar a articulação indissociável entre simbólico e
real presente no ser falante, entre inconsciente e pulsão. Diante disso, a compulsão a repetição é uma
forma de nomear o real lacaniano como aquilo que sempre retorna no mesmo lugar.
De maneira categórica, Lacan traduz
a tiquê como “encontro do real” (ibid., ibid, grifo do autor). A origem da
função da tiquê – em suas palavras do
real como encontro faltoso – pode se extraído primeiramente da noção de trauma
em psicanálise. O trauma enquanto algo da ordem do excesso, do inassimilável,
do encontro com o real na medida em que o sujeito não consegue representá-lo e se
vê ultrapassado pelo evento em sua dimensão de pura ruptura.
Nesse sentido, podemos com Freud e
Lacan inferir que se o funcionamento psíquico fosse regido unicamente pelo
principio do prazer, a insistência desprazerosa do trauma não teria lugar. O trauma só é lembrado porque há uma falha na
insistência da repetição significante, no qual localizamos a ordem do real.
Nesse sentido, Oliveira & Fux (2014) argumentam que o encontro
com o real do trauma extrapola o principio do prazer e por isso insiste em não
se inscrever, sendo essa falha na inscrição o ponto mais importante do que
Freud abordou sobre a repetição em 1920, ainda que ele não tenha retirado toda a
magnitude a respeito da brincadeira infantil. “Se o trauma é o
inassimilável, ele não pode ser dominado, ele sempre deixa um resto, é e esse
resto que motiva a repetição. A repetição, por sua vez, nunca dará conta da
prometida vinculação, o que não significa que nada pode ser transcrito. (ibid.: 263)
Posto essas considerações, Lacan (1998
[1964]) segue em sua discussão sobre a repetição pelo mesmo víeis freudiano: a
partir do sonho traumático e do brincar. Restringindo-nos aqui a questão do
brincar, Lacan é preciso ao situar que a formulação de Freud sobre o papel da
criança como agente, como ativo, na brincadeira de desparecimento da mãe é um
fenômeno secundário. Lembra-nos ainda uma consideração de Wallon (filósofo,
médico e psicólogo francês que ficou conhecido por seu trabalho sobre a Psicologia
do desenvolvimento infantil) a respeito da relação da criança com o afastamento
da mãe. Segundo Wallon, o que a criança vigia não é a porta por onde sua mãe
saiu, esperando seu retorno; ela vigia justamente o ponto em que ela o deixou,
o vazio que ali se instaurou. (ibid.,ibid.)
Assim, retomando o Fort-Da, Lacan
destaca essa função do vazio – se assim, posso dizer – para fazer relação com a
sua formulação a respeito do objeto a. Ele
nos diz que o carretel está ligado ao neto de Freud por um fio que ele segura e
a partir disso ele expressa o que dele se destaca, tal como uma
“automutilação”. E complementa:
“Pois o jogo do carretel é a resposta do sujeito àquilo que a ausência
da mãe veio criar na fronteira de seu domínio – a borda do berço – isto é, um fosso, em torno do qual ele nada mais
tenha senão o jogo do salto. Esse carretel não é a mãe reduzida a uma bolinha
[...] é alguma coisinha do sujeito que se destaca embora ainda sendo bem dele,
que ele ainda segura. (LACAN, 1998 [1964]: 63)
Sendo assim, Lacan (ibid.) situa que a repetição da brincadeira de
jogar e puxar de volta o carretel não deve ser pensada como um modo pelo qual a
criança expressa seu desejo de retorno da mãe, visto que um grito, um apelo,
atenderia a essa função. O que se repete é a saída da mãe como “causa de uma Spaltung no sujeito” (LACAN, 1998
[1964]: 63). Dizendo de outro modo, o que se repete é a divisão, a separação do
sujeito em relação ao Outro. Esse
ponto, então, nos remete ao processo de constituição subjetiva.
Lacan (1998 [1964]) nos indica que o sujeito
surge no campo do Outro, imerso na linguagem e como efeito de duas operações:
alienação e separação. A alienação vem demarcar que nenhum falante existe sem a
relação com o Outro e que ele inicialmente se situa como objeto, marcando sua existência
e seu desejo pela incidência do desejo do Outro sobre ele. Contudo, a separação
salienta a tentativa do falante de se “separar”, sair do lugar de objeto e
assim, realmente assumir a condição de sujeito desejante, portanto, faltoso. Diante
da operação que se expressa na separação, o que temos é uma divisão (do sujeito
e do Outro), que tem como resto o objeto a.
Sobre o objeto a, Lacan é preciso:
“Na medida em que ele é a sobra, por assim dizer, da operação subjetiva,
reconhecemos estruturalmente neste resto, por analogia de cálculo, o objeto
perdido.” (2005 [1962-63]:179)
Lacan
nos apresenta o objeto a enquanto um
dejeto, da ordem da queda, que resiste a qualquer “significantização” –
portanto, seu caráter real –, porém com
a função constitutiva do sujeito desejante. Precisamente, Lacan no Seminário
10 (2005 [1962-63]), situa o objeto a
enquanto uma parte de nós que é arrancada, ficando aprisionada na máquina e
tornando-se irrecuperável; objeto perdido, objeto cedível, nos distintos níveis
de corte corporal, que constitui o suporte de toda e qualquer função de causa.
Daí podermos situar o objeto a como
objeto causa de desejo, que não diz respeito ao objeto visado (que pode ser
representado), mas se situa atrás do desejo. Nesse sentido, Lacan nos ensina a
ligar o desejo à função de corte e pô-lo numa certa relação de resto, sendo
isso que o sustenta e o move.
Para
Lacan, a noção de castração está relacionada com o fato de que, em determinado
momento, o sujeito é forçado a renunciar a algum gozo. Assim, Lacan pôde situar na segunda virada de
seu ensino que na castração o que está em jogo é a separação – uma perda sob a
forma de um órgão libido, uma perda de gozo. E ele esclarece que “maneira mais
segura de abordar [...] algo perdido é concebê-lo como um pedaço de corpo.” (LACAN,
2005 [1962-63], p. 149. ) Assim, é
preciso entregar, como garantia da cadeia significante, um pedaço de corpo.
Essa
é, portanto, a função de corte, de objeto cedível, automutilação, que Lacan
procurou destacar na experiência do Fort-Da.
Sendo assim, podemos mais uma vez assinalar que o jogo do carretel é uma
repetição da reposta do sujeito à separação do Outro, que ele experimenta como
“alguma coisinha que se destaca” dele próprio e que remete a uma perda de gozo
estruturante. Diante disso, nesse jogo, a criança está tentando representar a
falta e o primordial nessa brincadeira é o processo de divisão do sujeito aí implicado,
sua castração.
Escrever a separação do Outro é
impossível tendo em vista seu caráter de encontro com real, contudo, o jogo do
carretel teve sua função em permitir que algo pudesse ser transcrito dessa
experiência. A esse repeito, Vidal (s.d.) nos lembra sobre o caráter de
prematuridade do humano que o coloca numa posição de dependência total frente
ao Outro, ao mesmo tempo, que vivência um profundo desamparo. Nesse sentido,
quando o neto de Freud brinca com o carretel, algo pode também ser operado
nele, passando da posição de objeto dependente a consentir com a perda de
objeto, imaginá-lo como faltante. Um objeto, contudo, condensador de gozo e
causa de desejo.
Para
concluir: A função do brincar na clínica com crianças
Vidal (s.d) pondera que desde
Freud o brincar é entendido como um discurso particular no qual a criança
sustenta as formações do seu inconsciente – um discurso a decifrar. A
brincadeira é, portanto, uma forma inerente de expressão infantil e um
instrumento da criança no seu processo de constituição subjetiva, seu modo de
inscrição na ordem simbólica e na cultura.
É, nesse sentido, que é possível sustentar que sujeito, efeito da
articulação inconsciente, pode se manifestar através dos seus desenhos, sonhos,
jogos e brincadeiras. Sendo assim, não é preciso que se demande à criança que
ela brinque em análise, pois é uma estrutura que se impõe na clínica como sendo
específica a ela.
Não obstante, o jogo do Fort-Da nos
ensina que a brincadeira não se relaciona apenas com o principio do prazer, com
a fantasia, mas pode servir também como elaboração psíquica para lidar com o que
se coloca como impactante para a criança.
Nesse caso, a repetição nos jogos infantis emerge como tentativa de assimilação
de experiências não prazerorosas e
já pode ser um contorno que a criança constrói em torno do que ela viveu. Cohen
& Miranda (2012) consideram ainda que o brincar atua como uma das formas de
atenuar o sofrimento psíquico na medida em que a brincadeira possibilita
diminuir a tensão gerada por situações difíceis que a criança experimenta.
Pode-se, assim dizer que o
brincar será, portanto, o recurso privilegiado que a criança terá em análise para
expressar e tentar abordar: o traumático; seu mal estar e sofrimento em torno
do que vivência; a problemática de sua estrutura familiar; e também suas
fantasias e sua ficção a respeito do lugar que ocupa no desejo do Outro – Che
vuoi? Que queres? Um recurso,
portanto, que fala de sua verdade e do qual, como observa Freud, ela não
tentará esconder – ao contrário dos neuróticos que escondem suas fantasias – ,
cabendo o analista escutá-la.
Se o brincar é o recurso privilegiado
criança para expressar na clínica seu mal estar, cabe nos perguntar qual será a
via utilizada pelo analista para escutar seu sofrimento? É fundamental situarmos
que só há uma psicanálise e que Freud só pensou a experiência analítica pela
via da palavra. Como bem situa Almeida (2015), não há distinção entre adulto e
criança nesse sentido, pois o sujeito de que se trata é um só – o sujeito do
inconsciente. E o que melhor articula a natureza dos fenômenos
inconscientes? Lacan nos responde, a saber: a noção de significante. É nesse
sentido, que Cohen & Miranda sustentam o brincar como um ato surgido como
efeito da articulação de significantes do sujeito, no qual a criança:
cria
um mundo de fantasia ao qual se submete, mas que também mantêm uma nítida
separação entre ela e os fatos da vida. Se
os conflitos, os traumas existem, a criança poderá, frente à insatisfação e ao
mal estar, usar a fantasia como um modo saber-fazer com o real. (COHEN &
MIRANDA, 2012)
Portanto, o jogo e a brincadeira
tem papel na análise infantil não enquanto uma técnica, mas como um saber-fazer
inerente a toda direção de tratamento na clínica com crianças. Assim, devemos
tomar a repetição do brincar como um fazer e abordá-lo como linguagem e
discurso determinado pela insistência da cadeia significante, mas também como
ato da ordem do encontro com o real – tal como é possível extrair do ensino
lacaniano em torno do tema da compulsão à repetição. (VIDAL, s.d.) Nesse
sentido, Cohen & Miranda (1912) consideram que o brincar tem sua função na
clínica enquanto uma possibilidade de tratamento do real.
Se o real é o que não cessa de
não se inscrever e isso que motiva o caminho da repetição nos jogos infantis, o
lugar da brincadeira no encontro com o desejo do analista será possibilitar à
criança que algo possa ser transcrito dessa experiência com o real, bem como favorecer
a elaboração e um saber-fazer com as questões que se colocam em torno sua
existência.
REFERÊNCIAS:
ALMEIDA, Consuelo. A clínica com crianças: alcances
e impasses. In: Marraio, Rio de
Janeiro, vol. 29, Julho-2015.
FREUD, Sigmund. Além do princípio de Prazer
(1920) In: Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud. Edição standard brasileira. Rio de janeiro: Imago Ed., 1996. vol.
XVIII.
______. Escritos criativos e devaneios (1907). In: Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Edição standard
brasileira. Rio de janeiro: Imago
Ed., 1996. vol. IX
LACAN, Jacques. Seminário 10 – A angústia (1962-63). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2005.
______ Seminário 11 – Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
OLIVEIRA, Humberto & FUX, Jacques.
Considerações psicanalíticas sobre o jogo de esconder: do puti ao esconde-esconde. In:
Agora: estudos da teoria psicanalítica. Rio de Janeiro:
Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica IP/UFRJ. Vol. XVII, n° 2, Julho/Dezembro
2014.