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sexta-feira, 29 de outubro de 2021

LANÇAMENTO DO LIVRO - Corpo e afeto: população negra em pauta / Capítulo: ALIENAÇÃO E SEPARAÇÃO: POR UMA LEITURA SOBRE OS ATRAVESSAMENTOS DO RACISMO NA CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA


 Acabou de ser publicado o livro "Corpo e afeto: população negra em pauta", pela Editora Bagai, organizado por Wesley Henriques Alves da Rocha e Érika Aparecida de Oliveira, do qual pude contribuir com o capítulo intitulado "Alienação e Separação: por uma leitura sobre os atravessamentos do racismo na constituição subjetiva."

Segue abaixo o texto que escrevi.  O livro completo pode ser baixado pelo link: https://editorabagai.com.br/product/corpo-e-afeto-populacao-negra-em-pauta%e2%80%89/


BOA LEITURA!


ALIENAÇÃO E SEPARAÇÃO: POR UMA LEITURA SOBRE OS ATRAVESSAMENTOS DO RACISMO NA CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA

 

Flavia Gaze Bonfim[1]

 

Através das noções de “alienação” e “separação”, o psicanalista Jacques Lacan fundamenta a constituição subjetiva por meio do discurso do Outro. Mas de qual “Outro” estamos falando? Sendo altamente criteriosa com a noção de Outro proposta no ensino lacaniano, sabemos que ela não se restringe ao desejo materno e a lei paterna, mas também comporta o tesouro dos significantes que advém da linguagem, da cultura e da civilização.  Aqui, se coloca, portanto, um impasse que os psicanalistas brasileiros precisam atravessar: nossa cultura não é a francesa, nem europeia, a qual Lacan tomou para articular seu ensino. Isso, contudo, não implica em recusar que a psicanálise nos ofereça um importante arcabouço teórico para pensar a constituição do sujeito, seu desejo e seus modos de sofrimento. Mas para continuarmos nos servindo de sua radicalidade e de seu rigor, será preciso um trabalho  urgente e fundamental de pensar as contribuições da psicanálise à luz das particularidades sociais, culturais, econômicas e políticas do Brasil.

É digno de nota que importantes psicanalistas negras brasileiras iniciaram essa trilha, contribuindo para o avanço da práxis psicanalítica, entre as quais, posso citar: Neusa Santos Souza, Isildinha Nogueira e Lélia Gonzalez. Contudo, essa trilha ainda continua sem ser percorrida pela maioria dos analistas brancos brasileiros. Ao me incluir entre estes, não é demais afirmar que estamos atrasados nessa discussão e temos uma responsabilidade ética de nos aproximarmos destas leituras e de tantas outras que nos ajudem a pensar o racismo denegado no Brasil, visto que sem um aprofundamento nesta questão não estaremos à altura de uma clínica realizada em solo brasileiro. Uma clínica capaz de realmente oferecer uma “escuta” para os sujeitos que nos procuram, especialmente para aqueles que vem sendo historicamente silenciados, como é o caso das pessoas negras.

Posto isso, a proposta deste trabalho é discutir as especificidades que atravessam a constituição subjetiva da pessoa negra, tendo em vista, que a marca do racismo ainda se coloca de forma tão presente e cotidiana no Brasil. Sendo assim, partirei das noções de alienação e separação no ensino lacaniano, para em seguida pensar o racismo como uma marca cultural no Brasil e suas possíveis consequências sobre os negros.

 

 

ALIENAÇÃO E SEPARAÇÃO NO ENSINO LACANIANO

 

 

Proveniente do latim alienare, a palavra alienação quer dizer “tornar alguém alheio a alguém”; “tornar estrangeiro”, sendo elevada ao estatuto de conceito em diferentes campos de saber. De acordo com Ricardo Nepomiachi (2014), Lacan se serve desse termo no início do seu ensino para articular a alienação presente na formação do Eu, na medida em que sua constituição advém de uma exterioridade, do seu reconhecimento no olhar do Outro, que lhe oferece uma gestalt – conferindo-lhe uma unidade imaginária. Posteriormente, no seu segundo ensino, quando começa a trabalhar o conceito de Real, Lacan aborda essa noção para tratar não propriamente a formação do Eu, mas a constituição do sujeito.  (NEPOMIACHI, 2014)

 Se o Eu refere-se a noção de unidade, próprio ao campo da consciência,  o conceito de sujeito busca demarcar a divisão subjetiva entre a consciência e o inconsciente, entre o saber e não saber a respeito de si próprio, fruto dos efeitos alienantes da intervenção do significante. Será, portanto, no Seminário, o livro 11- Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1998 [1964]), que Lacan se dedicará a pensar como o sujeito se constitui, indicando que ele emerge no campo do Outro, imerso na linguagem e como efeito de duas operações: alienação e separação. Dizem respeito, contudo, a duas operações disjuntas, mas articuladas que abordam a relação do sujeito com o Outro. Convém enfatizar que não se tratam de etapas, fases, remetendo a uma visão desenvolvimentista que a criança alcançaria, mas diz de uma lógica onde se insere a constituição do sujeito.

Para falar de cada uma delas, Lacan se serve da teoria dos conjuntos: reunião e interseção. Ao articular a dimensão da alienação, Lacan (1998 [1964]) propõe dois conjuntos: o do ser (sujeito) e o do Outro (sentido). O que está em jogo é uma escolha forçada entre o ser e o sentido. O sentido remete ao Outro da linguagem na qual o sujeito se constitui. Se o sujeito escolhe “ser”, ou seja, escolhe não se alienar no campo do Outro, ele não se constitui. Mas, se escolhe o “sentido”, se aceita alienar seu desejo no desejo do Outro, ele pode advir como sujeito. Quando falamos aqui de “escolha”, não se trata de uma escolha deliberada; diz respeito a algo da ordem inconsciente, mas ainda sim constitutiva, no qual o sujeito se faz responsável também por ela.

Ao escolher o sentido, entretanto,  há a perda do ser, pois o sujeito advém em outro lugar e não de si mesmo. Por isso, em psicanálise, não lidamos com o ser, nem falamos em essência no ser humano. Assujeitar-se ao Outro implica necessariamente na perda de si mesmo. Nesse sentido, o sujeito ($) surge em sua  falta-a-ser como efeito do significante. Por outro lado, ao se assujeitar ao Outro, a criança se torna um sujeito da linguagem. Precisamente, Lacan (1998 [1964]) nos oferece o seguinte esquema como chave de leitura para a alienação:

 

 


   

                                                                                                                                                                                                        

Fonte: LACAN, Jacques. Seminário, o livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964).

Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 200.

 

A alienação implica na lógica da reunião, na qual está em jogo uma escolha que tem por consequência: nem um; nem outro. Para metaforizar o que se passa na alienação, Lacan (1998 [1964]) diz se tratar de uma escolha imposta tal como a de um assaltante: “A bolsa ou a vida! Se escolho a bolsa, perco as duas. Se escolho a vida, tenho a vida sem a bolsa, isto é, a vida decepada.” (1998 [1964], p. 201) Ou seja: escolhendo-se a bolsa (o ser / ser por ele mesmo), a vida é perdida e o sujeito fica impossibilitado de se constituir, caindo no não-senso. Por outro lado, escolhendo a vida (o sentido), este só subsiste decepado e algo é perdido. Dizer que o sentido só existe decepado, partido, é apontar que o humano se constitui dividido, marcado pelo Outro, tendo um saber e um não saber sobre si mesmo, sendo isto a dimensão do inconsciente no sujeito.

A alienação, portanto, vem demarcar que nenhum falante existe sem a relação com o Outro e que ele inicialmente se situa como objeto do desejo desse Outro. Todavia, a constituição subjetiva não se reduz a uma total alienação, visto que requer também uma “separação”. Esta salienta a tentativa do falante de se “separar”, sair do lugar de objeto e assim, realmente assumir a condição de sujeito desejante, logo, faltoso. Na separação, o Outro não é o mesmo que o Outro da alienação. Ele aparece barrado, também faltoso, de modo que não é capaz de nomear completamente o ser do sujeito. Nesse sentido, conforme indica Lacan (1998 [1964]), na separação está em jogo o recobrimento de duas faltas: a do sujeito e a do Outro.

Dizendo de maneira distinta, o encontro com a falta do Outro, com o desejo do Outro, abre ao sujeito a possibilidade de se identificar com esta falta e ocupar, inicialmente, o lugar do objeto da falta do Outro. É a maneira como o sujeito tenta inicialmente se situar diante do desejo enigmático do Outro. Sobre isso, Lacan comenta: “Nos intervalos do discurso do Outro, surge na experiência da criança, o seguinte, que é radicalmente destacável – ele me diz isso, mais o que é que ele quer?” (1998 [1964], p. 203 ) Nisto, o sujeito constata que essa relação é marcada por um desencontro, ou seja, o Outro deseja além dele, o Outro é barrado, dando sinais de sua incompletude e falibilidade. A criança não é capaz de tamponar o desejo do Outro. Isso permite ao sujeito, sair do lugar de objeto e escolher pelo desejo, situando-se como sexuado, através de identificações que lhe marcam.

Nos termos lacanianos, a separação diz de uma operação de interseção. Por outro lado, Lacan considera que na interseção entre o sujeito e o Outro, não há nada, o lugar está vazio – lugar este que será ocupado pelo objeto a, objeto causa de desejo. Isto é: diante da operação que se expressa na separação, o que temos é uma divisão (do sujeito e do Outro), que tem como resto o objeto a. Sobre o objeto a, Lacan é preciso: “Na medida em que ele é a sobra, por assim dizer, da operação subjetiva, reconhecemos estruturalmente neste resto, por analogia de cálculo, o objeto perdido.” (2005 [1962-63], p. 179) O objeto a releva, assim, ser o último indício de uma unidade hipotética entre o sujeito e o Outro, de uma satisfação mítica, sendo por meio de uma relação com ele que o sujeito constrói sua fantasia, $◊a (Sujeito dividido em relação ao objeto a). Trata-se, contudo, de uma fantasia de completude, apontando para o lugar que ele supõe estar em relação ao desejo do Outro.

Ao final desse processo, podemos dizer que o sujeito não se encontra nem completamente alienado, nem completamente separado, mas amplamente afetado pelos efeitos do discurso – sendo condição de sua possibilidade de constituição.  

 

 

DESCOLONIZANDO O CAMPO DO OUTRO

 

 

Por vezes, há uma tendência a pensar o Outro reduzido as figuras parentais. Contudo, no ensino lacaniano, o Outro não é propriamente uma pessoa, ainda que a constituição do sujeito dependa de um desejo particularizado,  implicando a relação com um desejo que não seja anônimo.” (LACAN, 2003 [1969], p. 369). Mesmo que o Outro fosse igualado a mãe e/ou o pai, seria preciso levar em conta que os pais se inscrevem em uma dado contexto sócio cultural e são marcados pelo o que ocorre em sua época – o que repercute naquilo que transmitirá ou não à criança.

 Para Lacan, o Outro comporta de maneira mais ampla a ideia de tesouro dos significantes, um campo da linguagem, um corpo social, uma rede,  no qual o sujeito é mais pensado do que efetivamente se pensa. É por meio dele que estruturam as determinações simbólicas da história do sujeito, no qual se inclui o desejo do Outro, a lei, a ordem cultural, a história e os traços fundamentais da civilização.

Se o Outro traz também a marca da cultura e dos efeitos do laço social, faz-se necessário pensar de forma mais abrangente de que “campo do Outro” estamos falando quando levamos em conta as particularidades dos sujeitos que nascem no Brasil. Essa localização não é irrelevante. Promover essa interrogação é fundamental para não continuarmos tomando o sujeito pautado no universal eurocêntrico – o que nos leva também a nos aproximarmos da produção de subjetividade que engendra a constituição subjetiva dos brasileiros.

Primeiro ponto a considerar é que o brasileiro é um povo tecido a partir de um tenso encontro entre três povos: indígenas, portugueses e africanos. Ao mesmo tempo, não somos europeus, nem africanos, nem indígenas. Aquele considerado no Brasil como “branco” não é branco aos olhos dos europeus e o “negro” não é africano para os africanos. Por outro lado, forjar uma identidade fruto dessa mistura de três povos também não é capaz de nomear o que seria mais particular da nossa cultura.  Pelo contrário, se há algo mais característico, seria o fato de que    nós,  brasileiros – tendemos a reinterpretar essas influências e diferenças, com uma forma paradoxal de lidar com a diversidade cultural, que ora é desprezada, ora é exaltada.

Procurando localizar o povo brasileiro, Lélia Gonzalez nos lembra que a construção do nosso território não é fruto somente da influência européia, mas de uma construção mais plural. Precisamente, ela aponta que somos uma “América Africana cuja latinidade, por inexistente, teve trocado o t pelo d para, aí sim, ter seu nome assumido com todas as letras: Améfrica ladina” (2019 [1992-93], p. 341). Isso a leva a situar que todos os brasileiros são ladino-amefricanos e não somente os negros. Todos nós somos atravessados e influenciados por uma dinâmica cultural africana, mas construída a partir de uma experiência particular dos afrodescendentes na América. Por outro lado, por denegarmos tal condição de amefricanidade, o racismo à brasileira se volta justamente contra aqueles que a testemunham: os negros.

Sobre essa dinâmica cultural, uma outra consideração pertinente seria pensar nossa própria língua. Seguindo ainda Gonzalez (2019 [1992-93]), aqui se fala o “pretoguês”. Este diz respeito a marca da africanização no português, que inclui o caráter tonal e rítmico das línguas africanas. Seria o pretoguês nossa língua materna, com traços de lalíngua? Apoiando-se em Gonzalez, Marcus André Vieira afirma que sim. Em seus termos:

O pretoguês é o português que se deixa atravessar pelo que de sua história foi, mais que rechaçado, estraçalhado. Suas marcas, porém, estão no ar, na argamassa do que nos constitui. Somos filhotes da cultura, feita não apenas do que se vê e sente, mas também do que se pressente na ponta da língua, desses restos linguageiros que Lacan chamou lalíngua. (2021, s/p).

 

Resumindo, nossa cultura, nossa língua, nossa arte, nossa organização religiosa, na qual podemos localizar aspectos do campo do Outro é fortemente influenciado pelos traços do povo africano. Ao mesmo tempo, essa influência é recusada, silenciada, como uma verdade que precisa ser ocultada e invisibilizada. Se ela é ocultada, isso tem relação com o racismo estrutural e com um discurso dominante que busca promover a manutenção de toda uma desigualdade social que retoma nossa longa tradição escravocrata. Esse discurso dominante teve inclusive a força de promover o mito da democracia racial, contribuindo para que o racismo permanecesse denegado, constituindo-se “como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira.” (GONZALEZ, 2019 [1984], p. 238, grifo da autora) . Ou seja, nossas formações do inconsciente são atravessadas pelo modo como o racismo em sua face denegada comparece em nosso país, pois, como afirma Marie-Hélène Brousse (2003),  o inconsciente tem relação com o laço social.  

 

 

APONTAMENTOS CLÍNICOS SOBRE A CONSTRUÇÃO SUBJETIVA DOS NEGROS NO BRASIL: EFEITOS DO CAMPO DO OUTRO

 

 

A psicanalista Isildinha Nogueira (1999)  afirma que a sociedade estabelece sobre os corpos seus sentidos e valores – o que a leva formular qual o lugar do corpo negro a partir dessa definição.  Ou seja, por um passado histórico de duradoura escravização, o corpo negro é desumanizado e impregnado pelo sentido de “peça”, “mercadoria”, “coisa”, que se presentifica na memória social e atualiza o preconceito racial. (NOGUEIRA, 1999) Além disso, ao negro, é relegado as mais variadas representação depreciativas, sendo seu corpo e seus traços fenotípicos (pele, cabelo, nariz e boca) o alvo de uma hierarquização estética  em relação aos brancos, sempre acrescida da inferioridade a nível intelectual e moral. Jôse Sales (2019) pontua, nesse sentido, que essa desvalorização promove uma série de dificuldades no campo da corporeidade, chegando a uma relação persecutória com o corpo, de controle e observação, com o intuito de se moldar ao branco.

Com Lacan (2003 [1972a]), podemos dizer que, se o corpo negro é alçado a esse lugar, isso tem relação com o racismo de discurso. Mais ainda, ele afirma que todo suporte do discurso é o corpo (LACAN, 2012 [1972b]) – o que nos leva a entender que é pelo discurso que as pessoas negras têm seus corpos aprisionados, petrificados em posições sociais e lugares simbólicos, com o objetivo de conservá-los na condição de subalternizados. Não obstante, considera Lacan, o discurso é aparelho de gozo e, ao tocar o corpo, produz modos de gozo e modos de viver a pulsão – sendo este ponto uma via para pensar as consequências psíquicas do racismo sobre a construção subjetiva dos negros, juntamente com todo sofrimento que ele acomete.

Sobre o impacto dos discursos racistas para a população negra, o psiquiatra martinicano Franz  Fanon (2008 [1952]) em seu livro Pele negra, máscaras brancas considera que eles promovem uma “alienação psíquica do negro”, na medida em que a pessoa negra é forçada a usar a língua do colonizador, seus costumes, mimetizando seu opressor e buscando alcançar o branqueamento da raça. Deivison Faustino (2018) situa que o problema levantado por Fanon reside no fato da cultura europeia ser ideologicamente igualada a expressão universal de civilização, humanidade e educação, de modo que o colonizado é forçado a negar sua condição sócio histórica para se vincular ao universo do colonizador e, com isso, ser reconhecido como humano.   

Vale considerar que apesar de Lacan e Fanon usarem o termo “alienação”, há uma distinção quanto ao uso que os autores fazem do mesmo. Para Lacan, a alienação é constitutiva de todo sujeito, no qual ele também inclui a separação; enquanto que o objetivo de Fanon é descrever um modo particular de alienação subjetiva que acontece com as pessoas negras submetidas ao processo de colonização. Isso, porém, não faz essas construções necessariamente excludentes. Pelo contrário, com Fanon, somos justamente levados a refletir que, se a alienação é constitutiva para Lacan, o fato de o sujeito estar inserido em uma sociedade colonial e racista levanta outros problemas que precisamos considerar de modo a não alimentarmos o branco europeu como sinônimo de universal – proposta empreendida por esse trabalho.  Ter um corpo negro comporta diferenças, não por uma questão biológica, mas porque este é banhado por discursos racistas.

Precisamente, Fanon (2008 [1952]) chama a atenção para uma série de questões subjetivas da pessoa negra ao viver em uma sociedade colonial. Por exemplo, ele aponta como a dialética hegeliana não é capaz de ser verificada nesses casos.  O negro chega ao mundo desejando reconhecer-se como sujeito, mas o que lhe é revelado é a sua objetificação, seu não-lugar nesta condição. Se o branco é o universal, o negro é alçado a um lugar de exceção ao humanismo branco europeu. Diante disso, para ser reconhecido como humano, a pessoa negra passa a desejar ser branco, negando sua negritude ao usar uma “máscara branca”. Contudo, isso é inoperante, pois jamais alcança tal reconhecimento. (FANON, 2008 [1952])   

O negro permanece, assim, sem conseguir se inserir no mundo dos brancos e com dificuldades de assimilar sua negritude. Daniele Menezes at al (2020) pondera que a cultura ensina o negro a se embranquecer e se domesticar, seja tratando-o como incivilizado, violento e ameaçador,  seja promovendo a ideia de quanto menos ele se apresentar negro, mais ele pode desfrutar do mundo dos brancos. Segundo Faustino (2018), na perspectiva de Fanon, o colonizado não se submete a essa condição somente porque é subjetivamente alienado, mas porque essa alienação é tão poderosa que não há outra possibilidade de ser humano que não seja sendo branco. Sales (2019) comenta ainda que ir em direção à brancura para ser reconhecido como humano trata-se, portanto, de uma tática para escapar da violência do racismo.

Neusa Santos Souza (1983), por sua vez, no seu livro Tornar-se negro considera que a pessoa negra acaba sendo forçada a construir de um “Ideal de Eu branco”. Se isso ocorre, é devido ao fato do sujeito receber muito precocemente mensagens negativas sobre ser negro – o que pode acarretar uma série de dificuldades para tomar o corpo e a pele negra como objeto de investimento amoroso e, consequentemente, para a formação do seu narcisismo. O que remete a negritude, notadamente em seu corpo, ganha contornos pejorativos e o sujeito como um todo tende a ser engolido por essa engrenagem. A  brancura torna-se, assim,  o modelo a ser alcançado, o próprio ideal do negro, mas não sem o preço de perceber-se sempre não podendo atingi-lo. Como consequência, Souza (1983) observa casos de autodesvalorização,  conformismo, atitudes fóbicas, submissão, intimidação e decepção consigo próprio por não responderem ao ideal de brancura não importando os êxitos que o sujeito possa ter alcançado.

Convém ressaltar, conforme pondera Freud, que o sujeito nunca está a altura de seu ideal, nunca consegue atingi-lo, seja ele branco ou negro. A situação torna-se altamente complexa quando esse ideal é muito distante e a instância do supereu, em sua face tirânica e sem limites, impõe ao sujeito alcançá-lo e por isso ser impossível, castigá-lo pela via do sentimento de culpa. (SOUZA, 1983) Por outro lado, sobre os efeitos do ideal de brancura, Sales argumenta: “Não se trata aqui de uma insatisfação neurótica, onde o ideal fica no horizonte, mas de uma acentuada defasagem entre o que é e o que se almeja.” (2019, p. 110)

É, nesse sentido, que Souza pensa as consequências psíquicas do racismo sobre os negros para além de todas as tramas singulares de sua história de origem. Tem algo do corpo social que incide sobre o corpo próprio, com repercussões subjetivas, no campo do desejo, no circuito pulsional que pode levar a pessoa negra a se identificar e assimilar os discursos racistas fruto de um Outro cruel, levando-a ao pior.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

            O esforço empreendido por essa discussão foi apresentar os conceitos de alienação e separação proposto por Lacan a partir de uma perspectiva crítica a respeito do campo do Outro. Pensar a constituição dos sujeitos brasileiros é levar em conta nosso contexto sociocultural, no qual a forma paradoxal de reinterpretação das influências e diferenças dos três povos que nos compõem não podem ser desprezadas, sendo o racismo um ponto marcante de nossa história. Isso, portanto, nos permite compreender que nascer negro no Brasil traz dificuldades distintas na medida em que se é bombardeado por discursos racistas – o que pode implicar em estar mais submetido e alienado aos seus efeitos devastadores na medida em que promovem o ideal de brancura e sofrimentos em torno de uma decepção em relação a si próprio, como foi possível extrair do pensamento de Fanon e Neusa Souza.

Por outro lado, se há essa alienação constitutiva, pois só se advém como sujeito dessa forma, há também a possibilidade de separação. Alienação e separação são operações lógicas articuláveis na psicanálise – o que permite concluir que os significantes, os discursos, nos quais o sujeito encontra-se capturado não são capazes de recobrir todo o seu ser, abrindo espaço e possibilidade de separação dos seus sentidos mortificadores e devastadores.

Separar-se desses discursos –  especialmente quando ele tem um tom racista que captura o corpo – inclui um árduo trabalho, mas sempre singular: seja pela análise pessoal, pela arte, pela escrita, pela política, entre outros, de modo que cada sujeito precisará inventar sua maneira. Isso não exclui, contudo, que a sociedade se coloque também responsável por esse trabalho, pois promover a dissolução dos discursos e práticas racistas é atacar o cerne do problema e sanar as modalidades de sofrimento que ele acarreta para as pessoas negras no Brasil.

 

REFERÊNCIAS:

 

BROUSSE, Marie- Hélène. O inconsciente é a política. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2003.

 

FANON, Frantz. Peles negras, máscaras brancas. (1952) Salvador: EDUFBA, 2008.

 

FAUSTINO, Deivison. Franz Fanon: um revolucionário, particularmente negro. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018.

 

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural da Amefricanidade. (1992-1993) In: HOLLANDA, Heloisa. (org.) Pensamento feminista brasileiro: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. 2019. p. 341-352.

 

GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na cultura brasileira. (1984) In: HOLLANDA, Heloisa. (org.) Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. 2019. p. 237-255.

 

LACAN, Jacques. O aturdito. (1972a) In: Outros Escritos.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2003. p. 448 – 497.

 

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 10 – A angústia (1962-63). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

 

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

 

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 19 – ...ou pior. (1972b)  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2012. 

 

LACAN, Jacques. Notas sobre a criança (1969). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2003. p. 369-370 .

 

MENEZES, Daniele; NASCIMENTO, Jefferson; SCHECHTER, Rosa; FALBO, Gisele & VIDAL, Paulo. Das impossibilidades do racismo etnosemântico à fala como saída. In: Arquivos Brasileiros de Psicologia,  vol.72,  Rio de Janeiro,  2020. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672020000300010&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt Acesso em: 03 de julho de 2021

 

NEPOMIACHI, Ricardo. Alienação. In: Scilicet: A ordem simbólica no século XXI. – Associação Mundial de Psicanálise.  Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2011, p. 31-33.

 

NOGUEIRA, Isildinha. O corpo da mulher negra. In: Pulsional Revista de Psicanálise, São Paulo, n. 135, 1999, p. 40-45. Disponível em: https://www.yumpu.com/pt/document/view/40658638/o-corpo-da-mulher-negra-editora-escuta. Acesso em: 04 de março de 2020.

 

SALES, Jôse. Racismo no Brasil: um olhar psicanalítico. Rio de Janeiro: Autografia, 2019.

 

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se Negro ou As Vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1983.

 

VIEIRA, Marcus André. A madame saiu: Lélia Gonzalez e a subversão do sujeito. Radar - Blog da Escola Brasileira de Psicanálise. 2021. Disponível em https://ebp.org.br/rj/blog/index.php/2021/04/28/a-madame-saiu/ Acesso em: 01 de maio de 2021.

 

 



[1] Psicóloga pela UFF (2005). Psicanalista. Doutora em Psicologia da UFF (2021). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Pesquisa e Clínica em Psicanálise do Instituto de Psicologia da UERJ (2011). Link do Lattes: http://lattes.cnpq.br/9692197970915576


sexta-feira, 8 de outubro de 2021

VOLTEI...


 

Após ter ficado um longo tempo sem publicar no blog, estou de volta.... Esse afastamento foi por uma boa razão: estava concluindo meu doutorado. Por outro lado, foi um período de intenso estudo e pesquisa, que rendeu alguns frutos que compartilho aqui com vocês. São três artigos que escrevei em co-autoria, no qual me arrisquei em temas novos, como o racismo e o feminismo. Deixo com vocês o resumo e link, caso tenham interesse de seguir com a leitura: 


1) Psicanálise e racismo: entre os tempos de ver, compreender e concluir 

Autoras:  Rosa Schechter e Flavia Bonfim 

Resumo: Propomos neste artigo uma articulação entre psicanálise e racismo a partir dos três tempos lógicos de Lacan. Partimos de um instante de ver, constatando que do racismo nada quisemos saber, seguido de um tempo para compreender os motivos do distanciamento dos psicanalistas brasileiros das questões raciais. O tema do racismo permanece recalcado e denegado pelo povo brasileiro, de modo que também os analistas não escaparam desse sintoma social. Diante disso, chegamos ao momento final, concluindo que se tornou urgente discutir sobre o sofrimento psíquico produzido pelo racismo. O racismo pode ser entendido como um ódio ao gozo do Outro. A partir dele, discursos são estruturados e operam de modo a aprisionar as pessoas negras a lugares simbólicos de subalternização. Tais discursos têm o corpo como suporte e produzem impacto na constituição subjetiva do negro, podendo acarretar sentimentos de autodesvalorização e inadequação.

Link: https://periodicos.uff.br/ayvu/article/view/43469

 

2)  Encontros e Desencontros de Judith Butler com a Psicanálise

Autores: Flavia Bonfim e Paulo  Vidal


Resumo: 


A proposta deste artigo é apresentar algumas considerações sobre o pensamento da filósofa Judith Butler, suas críticas à teoria de Lacan, bem como alguns contrapontos a seus argumentos críticos, com o objetivo de demarcar os encontros e desencontros de Butler com a psicanálise. Nesse percurso, identificamos que as críticas da autora se restringem ao primeiro ensino lacaniano, não levando em considerações os avanços das fórmulas quânticas da sexuação e a noção de sinthoma, como arranjo singular do falasser com o gozo. Além disso, constatamos também que seu questionamento em relação à psicanálise não impossibilitou que, para pensar o gênero, Butler se servisse do aparato conceitual da metapsicologia freudiana e lacaniana, especialmente da noção de pulsão. Concluímos que as críticas de Butler à psicanálise não precisam ser tomadas como um problema ou um entrave, visto que elas promovem uma exigência frutífera de precisão teórico-clínica, que irrompe na atualidade, para avançarmos no debate sobre as novas ordenações da sexualidade.


        Link:  https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/62735


3) Crítica à categoria universal de “mulher”: por uma articulação entre feminismo e psicanálise

Autoras: Flavia Bonfim e Rosa  Schechter

Resumo:


A proposta deste artigo é problematizar a noção da categoria universal “mulher”, com a intenção de pensar uma possível aproximação entre o feminismo e a Psicanálise. Para tanto, iniciamos com as considerações do psicanalista Jacques Lacan sobre o feminino, a partir de seu aforismo “A mulher não existe”. Em seguida, discutimos a crítica de Judith Butler sobre a inexistência do sujeito que o feminismo almeja representar, na medida em que o momento inicial do movimento dissociou a temática do gênero das questões raciais, classistas e étnicas. Como exemplo dessas questões negligenciadas, destacamos o feminismo negro como um analisador dos impasses do discurso universalizante no interior do movimento feminista. Por fim, concluímos que tanto Lacan quanto Butler, com as particularidades de suas produções teóricas, denunciam a precariedade de uma identidade “mulher”.




Boa Leitura!

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

CURSO ON-LINE: “Relações raciais e branquitude: questões para clínica psicanalítica”, com a professora Jôse Sales.

 



Datas: 9, 16 e 23 de março de 2021 (terças-feiras)

                                        Horário: 19:30 as 21:00 h


PROFESSORA: Jôse Sales 
Mestre e Doutora em Teoria Psicanalitica (UFRJ). Psicóloga da Secretraria de Educação do Municipio do Rio de Janeiro. Professora da Universidade de Sá. Autora do Livro "O racismo no Brasil: um olhar psicanalítico".



Objetivo do curso: Considerando as particularidades das relações raciais no Brasil, o presente curso tem como objetivo principal auxiliar o desenvolvimento de uma prática psicanalítica capaz de perceber e atuar nos impactos subjetivos dos mitos racializantes que aqui vigoram. Partindo do diálogo com as ciências sociais, examinaremos a noção de raça, as especificidades das relações raciais brasileiras, os mitos racializantes e o conceito branquitude. Apresentaremos ainda as balizas de uma clínica capaz de considerar e trabalhar com tais questões, para tal estudaremos os alguns ensinamentos advindos da prática de Ferenczi e da clínica do testemunho.

Investimento:

Até dia 12/02 - R$ 70,00

Após dia 12/02 - R$ 90,00

Inscrições:

Telefone: (21) 98084-8176

contato@singularcpp.com




O pagamento do curso pode ser feito por depósito bancário e em 2 X no cartão (realizado na sede da SINGULAR). Para mais informações, entre em contato pelo telefone: 98084-8176 ou por e-mail contato@singularcpp.com



Material didático e certificado incluso

*Bolsa para estudante negro(a)de psicologia.


*Estudantes negros(as) de graduação em psicologia poderão concorrer a 1 (uma) bolsa de 100% para curso. Para participar, basta escrever um texto de no máximo 10 linhas justificando seu desejo em participar do curso e enviar para o e-mail contato@singularcpp.com até o dia 05/02, especificando no assunto “Concurso de bolsa”. No e-mail, também deve constar uma foto da carteirinha de estudante ou algum documento que comprove a matrícula no curso de psicologia.


ORGANIZAÇÃO: SINGULAR - CENTRO DE PSICOLOGIA E PSICANÁLISE