"Temos que distinguir aí dois aspectos diversos, o teórico e o clínico.
Quanto à teoria, costuma-se falar de uma abordagem lacaniana
diferenciando-a de Freud. Mas é preciso ter todo o cuidado, porque,
rigorosamente falando, a abordagem lacaniana é inteiramente
calcada na freudiana. Hoje, se formos rigorosos e contemporâneos
aos avanços teóricos obtidos na psicanálise, não se pode mais falar
em Freud sem falar em Lacan, mas também não se pode falar em
Lacan sem Freud...
A visão que Lacan traz à tona sobre o inconsciente é a mesma que a
de Freud, embora seja uma visão melhor aparelhada, Lacan introduz
elementos teóricos que são como lentes de aumento, instrumentos
de pesquisa muito poderosos, que Freud não tinha. Mas o que ele vai
descobrir com sua visão ampliada é surpreendentemente justo aquilo
que Freud já mostrara em sua obra. Por exemplo, a demonstração
cabal da relação íntima e profundamente enraizada entre
inconsciente e linguagem coube a Lacan, mas ela já está espraiada
ao longo de todo o primeiro segmento da obra de Freud. A
demonstração disso foi freudiana, mas a percepção nítida de que ela
havia sido feita só foi possível com o ensino de Lacan. Em várias
regiões da teoria, Lacan veio a destacar algo que fora apresentado e
descrito por Freud em sua obra, embora não nomeadamente. A obra
de Freud é assim um constante manancial para os psicanalistas e o
que Lacan preconizou aos psicanalistas na década de 50 como um
movimento de "retorno a Freud" deve ser considerado hoje, como já
afirmou Alain Didier-Weill - um psicanalista discípulo de Lacan cujos
trabalhos, entre os quais cito Os três tempos da lei (Jorge Zahar
Editor) são bastante inovadores -, como sendo um retorno contínuo e
não algo que possa ser concluído. Essencialmente, Lacan nos faz ver
aquilo que está em Freud e não se via antes dele. Mas ele trouxe
igualmente novos desenvolvimentos para a psicanálise, embora
nenhum deles se ache dissociado em qualquer aspecto da obra
freudiana.
Claro que do ponto de vista clínico, certas inovações introduzidas por
Lacan (como as sessões de duração variável) foram objeto de um
grande estardalhaço, pois mexiam com regras e padrões
considerados intocáveis pelos psicanalistas até então. Mas isso era
um erro desses analistas, Freud jamais se mostrou rígido quanto a
isso, jamais preconizou que a técnica da psicanálise era algo
universal e absoluto, ele achava que cada analista deveria encontrar
a forma na qual sentisse que estava otimizando ao máximo seu
trabalho junto ao analisando.
Mas os discípulos freqüentemente se acham numa relação de
idealização em relação ao mestre que é perniciosa, pois retira a
capacidade de reflexão e de ponderação. Assim como os pósfreudianos
burocratizaram a prática da sessão fixa de cinqüenta
minutos que era praticada por Freud, alguns seguidores de Lacan
promoveram a burocratização da sessão de duração ultra-curta (de
no máximo quinze minutos de duração) que Lacan praticou somente
ao final da vida, quando já era procurado para análise por
psicanalistas do mundo inteiro. Isso foi um grave erro, talvez pior do
que o primeiro, pois os lacanianos para se sentirem tendo uma
atuação clínica diferenciada passaram a imitar a prática do próprio
Lacan - sem serem Lacan."
Texto extraído de parte da entrevista do psicanalista Marco Antonio Coutinho Jorge ao Diário do Nordeste em 21/04/2000.
Entrevista completa em:
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