Algumas considerações sobre o espetáculo diagnóstico na psiquiatria contemporânea*
Autor: Carlos Alberto Vieira (Psicólogo Clínico, em formação em psicanálise na Escola Brasileira de Psicanálise - RN.)
A cada nova atualização, o livro D.S.M. (cujo nome pode ser lido como “Doenças sob medida”) se torna, rigorosamente, uma extraordinária obra de ficção científica. Não se credita ao amanhã alguma possibilidade de maiores reuniões de cúmulos possíveis de se apresentarem, salvo se a impressionante capacidade de renovação, em nome de seu alto grau de absurdo for realmente inesgotável, em referência direta aos profissionais da psiquiatria adeptos da perpetuação daquilo que lhes concernem nesta proposição médico-científica.
O que nele já se pode ver, contrariando com propriedade a recomendação da clínica psicológica e psicanalítica, tornada consenso segundo a realidade peculiar à própria soberania clínica, segundo a qual é algo prudente aguardar o que virá a se inscrever naquilo que concerne às manifestações pessoais do paciente ao longo do tempo do tratamento, para só então se poder definir, portanto, com um grau mais preciso de rigorosidade, um diagnóstico aos pacientes, neste caso, em particular, o tempo já é suficiente em si mesmo, pois a cada nova vez que este livro é retomado para reelaboração (e também outros livros, como este), nós não estamos mais, de modo algum, no campo do estabelecimento de hipóteses, mas de uma conclusão efetivamente convicta, de que se está em questão um caso decididamente patológico - de seu ponto de vista propriamente social –, pois, partimos do pressuposto de que os sujeitos responsáveis pelo conteúdo em geral deste livro não são psicóticos, mas, não obstante, delirantes.
Outra questão: A “rede de cumplicidade” da qual fala o filósofo Cornelius Castoriadis, ao longo de seus escritos (particularmente naqueles referentes à “ascensão da insignificância), está expressa em toda a sua clareza, na medida em que a perspectiva utilizada propriamente por tal psiquiatria nos faz ver como algo certo e extremamente intrincado, o nada incipiente enlace entre Ciência e Capital, pelo fundamental intermédio da indústria mesma dos fármacos, e não apenas por isso, mas, igualmente, por todo o aparelho sistemático que, em última análise, faz convergir ao asseguramento das condições da grande teia de (des)razões dos que o tomam e fazem em seu grau maior de poder.
A adesão à norma constitui a “singularidade científica” da psiquiatria, de maneira que, para aqueles que a fazem sem um bom-senso, sequer mínimo, à singularidade dos sujeitos resta tratar tão somente, ao invés de se conceber como algo “natural” do humano, situa a concepção a partir do recurso do significante “patológico”.
A esta altura, não estamos mais situados na famigerada discussão a respeito da linha que faz diferir o normal do patológico, pois aí há tenuidade, e, neste caso, isso não está presente, haja vista o absurdo com o qual nos deparamos, por exemplo, em categorizar a timidez como uma patologia, sim, como enfermidade mental. O que se pretende, a partir de tal maneira, é, no fim, um julgamento tresloucado acerca da “natureza humana”, a qual se constitui fundamentalmente em meio à Cultura, e, portanto, na forma mais elástica da experiência universal referente aos “estilos de existência”, de modos de ser que respondem pelo quadro geral do estado de coisas humano, que, pelo conjunto de seus traços, responde, por sua vez, pela sustentação subjetiva (e mesmo objetiva) dos sujeitos.
Em junho de 2011, estive na cidade do Rio de Janeiro, onde participei no mês de junho do V Enapol (Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana), realizado pela Escola Brasileira de Psicanálise – EBP em conjunto com outras escolas da América e a Associação Mundial de Psicanálise – AMP. Eis o título do encontro: “A saúde para todos, não sem a loucura de cada um”. (Confesso que, neste momento, no qual acabo de escrever o referido título, fiz um ato falho ao substituir, vejamos, “A saúde”, por “A loucura”, de maneira que aqui se torna, segundo minha leitura, anúncio mesmo do que se tornou, em todo caso, apreendido especialmente ao longo do dias do Evento).
Ao longo dos trabalhos do Enapol, podia-se localizar algo que decerto fazia a comunidade geral das apresentações, a saber: o modo de vida singular à cada sujeito, como aquilo que deve sempre ser objeto de privilégio à ética e a técnica da psicanálise (nomeadamente, dos analistas), uma vez que se está a tratar da “diferença absoluta”, daquilo que em última instância diz respeito ao sujeito em seu grau mais íntimo e intransferível de subjetividade, segundo os protótipos singulares, a linguagem, os arranjos subjetivos e o desejo de cada exemplar humano.
Aos profissionais “psi” cabe de um modo particular o trabalho fundamentalmente dissociado das proclamações nomeadamente “científicas” da psiquiatria mal-dita, compondo nossa práxis por aspectos e princípios que possam, portanto, vir a corresponder ao sujeito da maneira mais próxima do factual espectro de coisas que formam os seus modos, universal, particular e singular de constituição de si mesmo.
Sustentar a posição de guardião do desejo e da singularidade humana não constitui atributo exclusivo da psicanálise, na medida em que os diálogos, rumo à complexidade, fazem mais sentido na medida do gradativo fomento de suas possibilidades/potencialidades e, portanto, da contingência dos tão essenciais encontros.
Há muito, o doutor Sigmund Freud já nos alertava para o que hoje se nos apresenta sob a forma de um esteio de “delírios sem medida”. Tomando o luto como ponto de equivalência a outras questões, escreve Freud:
"É digno de nota que jamais nos ocorre ver o luto como um estado patológico e indicar tratamento médico para ele, embora ocasione um sério afastamento da conduta normal da vida. Confiamos que será superado após certo tempo, e achamos que perturbá-lo é inapropriado, até prejudicial" - (Sigmund Freud, em "Luto e melancolia", 2010 [1914-16], p.172).
Viva, assim, a sabedoria freudiana.
* Este texto é de inteira responsabilidade do autor.O que nele já se pode ver, contrariando com propriedade a recomendação da clínica psicológica e psicanalítica, tornada consenso segundo a realidade peculiar à própria soberania clínica, segundo a qual é algo prudente aguardar o que virá a se inscrever naquilo que concerne às manifestações pessoais do paciente ao longo do tempo do tratamento, para só então se poder definir, portanto, com um grau mais preciso de rigorosidade, um diagnóstico aos pacientes, neste caso, em particular, o tempo já é suficiente em si mesmo, pois a cada nova vez que este livro é retomado para reelaboração (e também outros livros, como este), nós não estamos mais, de modo algum, no campo do estabelecimento de hipóteses, mas de uma conclusão efetivamente convicta, de que se está em questão um caso decididamente patológico - de seu ponto de vista propriamente social –, pois, partimos do pressuposto de que os sujeitos responsáveis pelo conteúdo em geral deste livro não são psicóticos, mas, não obstante, delirantes.
Outra questão: A “rede de cumplicidade” da qual fala o filósofo Cornelius Castoriadis, ao longo de seus escritos (particularmente naqueles referentes à “ascensão da insignificância), está expressa em toda a sua clareza, na medida em que a perspectiva utilizada propriamente por tal psiquiatria nos faz ver como algo certo e extremamente intrincado, o nada incipiente enlace entre Ciência e Capital, pelo fundamental intermédio da indústria mesma dos fármacos, e não apenas por isso, mas, igualmente, por todo o aparelho sistemático que, em última análise, faz convergir ao asseguramento das condições da grande teia de (des)razões dos que o tomam e fazem em seu grau maior de poder.
A adesão à norma constitui a “singularidade científica” da psiquiatria, de maneira que, para aqueles que a fazem sem um bom-senso, sequer mínimo, à singularidade dos sujeitos resta tratar tão somente, ao invés de se conceber como algo “natural” do humano, situa a concepção a partir do recurso do significante “patológico”.
A esta altura, não estamos mais situados na famigerada discussão a respeito da linha que faz diferir o normal do patológico, pois aí há tenuidade, e, neste caso, isso não está presente, haja vista o absurdo com o qual nos deparamos, por exemplo, em categorizar a timidez como uma patologia, sim, como enfermidade mental. O que se pretende, a partir de tal maneira, é, no fim, um julgamento tresloucado acerca da “natureza humana”, a qual se constitui fundamentalmente em meio à Cultura, e, portanto, na forma mais elástica da experiência universal referente aos “estilos de existência”, de modos de ser que respondem pelo quadro geral do estado de coisas humano, que, pelo conjunto de seus traços, responde, por sua vez, pela sustentação subjetiva (e mesmo objetiva) dos sujeitos.
Em junho de 2011, estive na cidade do Rio de Janeiro, onde participei no mês de junho do V Enapol (Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana), realizado pela Escola Brasileira de Psicanálise – EBP em conjunto com outras escolas da América e a Associação Mundial de Psicanálise – AMP. Eis o título do encontro: “A saúde para todos, não sem a loucura de cada um”. (Confesso que, neste momento, no qual acabo de escrever o referido título, fiz um ato falho ao substituir, vejamos, “A saúde”, por “A loucura”, de maneira que aqui se torna, segundo minha leitura, anúncio mesmo do que se tornou, em todo caso, apreendido especialmente ao longo do dias do Evento).
Ao longo dos trabalhos do Enapol, podia-se localizar algo que decerto fazia a comunidade geral das apresentações, a saber: o modo de vida singular à cada sujeito, como aquilo que deve sempre ser objeto de privilégio à ética e a técnica da psicanálise (nomeadamente, dos analistas), uma vez que se está a tratar da “diferença absoluta”, daquilo que em última instância diz respeito ao sujeito em seu grau mais íntimo e intransferível de subjetividade, segundo os protótipos singulares, a linguagem, os arranjos subjetivos e o desejo de cada exemplar humano.
Aos profissionais “psi” cabe de um modo particular o trabalho fundamentalmente dissociado das proclamações nomeadamente “científicas” da psiquiatria mal-dita, compondo nossa práxis por aspectos e princípios que possam, portanto, vir a corresponder ao sujeito da maneira mais próxima do factual espectro de coisas que formam os seus modos, universal, particular e singular de constituição de si mesmo.
Sustentar a posição de guardião do desejo e da singularidade humana não constitui atributo exclusivo da psicanálise, na medida em que os diálogos, rumo à complexidade, fazem mais sentido na medida do gradativo fomento de suas possibilidades/potencialidades e, portanto, da contingência dos tão essenciais encontros.
Há muito, o doutor Sigmund Freud já nos alertava para o que hoje se nos apresenta sob a forma de um esteio de “delírios sem medida”. Tomando o luto como ponto de equivalência a outras questões, escreve Freud:
"É digno de nota que jamais nos ocorre ver o luto como um estado patológico e indicar tratamento médico para ele, embora ocasione um sério afastamento da conduta normal da vida. Confiamos que será superado após certo tempo, e achamos que perturbá-lo é inapropriado, até prejudicial" - (Sigmund Freud, em "Luto e melancolia", 2010 [1914-16], p.172).
Viva, assim, a sabedoria freudiana.
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