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sábado, 12 de julho de 2014

Texto: Escutem os autistas!

ESCUTEM OS AUTISTAS !*

Por Jean-Claude Maleval


Os autistas que escrevem não são loucos literários. Eles não acreditam, como esses últimos, ter feito uma grande descoberta. São sujeitos que devem ser levados a sério. Eles se exprimem para mostrar que são seres inteligentes, paraa serem tratados com mais consideração, e para pedir respeito para suas invenções elaboradas para conter a angústia. Eles desejariam que se interditasse legalmente sua escuta para submetê-los, mais frequentemente sem seu consentimento, a métodos de aprendizagem ? É preciso tomar o partido de escutá-los ou o de coagi-los ? Escolher escutá-los expõe a se confrontar com opiniões perturbadoras.
   Uma das autistas de alto nível dentre as mais conhecidas, Donna Williams, não hesita, em relação ao tratamento do autismo, a se engajar fortemente : « a melhor abordagem », escreve, seria «  aquela que não sacrificasse a individualidade e a liberdade da criança com a idéia que se fazem da respeitabilidade e de seus próprios valores os pais, os professores como seus conselheiros ». Uma outra confirma: « … as pessoas que mais me ajudaram foram sempre as mais criativas e as menos ligadas a convenções 2»  A psicanálise não é uma, ela é múltipla, como o são as práticas psicanalíticas ; elas têm todas entretanto um ponto em comum : são fundadas sobre a escuta do outro.  Sonhar em interditar legalmente a escuta de um grupo humano revela uma ideologia política subjacente das mais inquietantes. Certamente, nem toda escuta é psicanalítica, mas como o legislador fará a diferença entre a prática psicanalítica nociva da escuta e a benéfica autorizada ? É ir além de seu papel de defender as abordagens surdas para a escuta das singularidades do sujeito autista ? Isto parece estar em ruptura com a Declaração dos direitos das pessoas autistas, proposta por Autisme Europe e adotada pelo Parlamento Europeu em 9 de maio de 1996. Nesta última, é demandado reconhecer e respeitar os desejos dos indivíduos, de sorte que os autistas deveriam ter  « o direito de não serem expostos à angústia, às ameaças e aos tratamentos abusivos». Como isso poderia se fazer sem os escutar?
   Todas as práticas psicanalíticas têm em comum a defesa do respeito do singular e sua não reabsorção no universal.  É o que desejavam unicamente os autistas que se exprimem. Não é aos estudos randomizados permitindo a avaliação científica impecável às quais convém demandar em primeiro lugar como fazer aí para tratar o autismo ; são os sujeitos concernidos que têm mais a nos ensinar. Eles possuem um saber precioso sobre si mesmos. Levemos a sério os conselhos dados por Jim Sinclair aos pais, também pertinentes para os educadores e os clínicos : « nossos modos de entrar em relação, afirma em nome dos autistas, são diferentes. Insistam sobre as coisas que suas expectativas consideram como normais, e reencontrarão a frustração, a decepção, o ressentimento, talvez mesmo a raiva e o ódio.  Aproximem-se respeitosamente, sem preconceitos, e abertos a coisas novas, e voces encontrarão um mundo que não teriam podido jamais imaginar3». Uma autista muda culta tal como Annick Deshays mostra-se também veemente para reivindicar um  cuidado dos autistas que não faça impasse sobre a singularidade deles :  « Por que fazer das discussões intermináveis sobre os escritos oficiais que dizem respeito aos encargos das pessoas autistas se os interessados eles mesmos não têm o direito às informações, ainda menos à palavra ?»escreve em seu computador. Ela se opõe aos métodos educativos que elaboram a priori o programa das etapas do desenvolvimento a franquear :  « Elaborar um plano científico de educação com os autistas, de maneira uniforme e unilateral, dispensa um regime de ditadura protetora, afirma. […] É mais importante  de início achar a faculdade (ou as faculdades) de cada pessoa autista antes de estabelecer um passo educativo». Ela considera que « Fazer  comportamentalismo é incitar tornarmo-nos « fáceis » por uma formatação que reduz nossa liberdade de expressão ; é endurecer nosso grave problema de identificação e de humanização». Ela procurafazer-se entender pelos especialistas para passar a seguinte mensagem :  « Dizer aos que decidem, desde hoje, que pensar por nós corre o risco de esvaziar a  « quintessência » de nossa razão de existir 5» Contra esses métodos, ela defende « o risco de um diálogo », à vontade de « domar o medo isolante», ela convida mesmo buscar  « gostar dos traços humorísticos próprios » da maneira dos autistas de « verem a vida », tudo isso, acrescenta, « obriga a trabalhar mais em unicidade do que em uniformidade, mais em relação dual que em propostas unilaterais ». Ao contrário da maioria dos autistas, ela pede para ser considerada como um sujeito capaz de uma criatividade que convém levar em conta : «Içar nossos conhecimentos segundo nossa vontade, sublinha,  desdobra um potencial  que  nos é próprio ». « Quanto mais tomo parte nas decisões que me concernem, acrescenta, mais tenho a impressão de existir por inteiro 6».
Na falta de serem ouvidos, muitos autistas terminam por se resignar ao que se lhe impõe ; em revanche, quando o sujeito possui os meios de se exprimir, ele se insurge. Assim Williams não esconde sua revolta na presença de certas técnicas educativas.  Nos anos 1990, ela fez um estágio na Austrália numa casa especializada para crianças com dificuldade. Ela observou lá dois educadores solícitos em seu trabalho com um autista. Ela ficou surpresa pelo desconhecimento deles do mundo inetrior da criança. « Eu fiquei doente, escreve, de vê-los invadir seu espaço pessoal com seus corpos, seu hálito, seus odores, seus risos, seus movimentos e seus barulhos.  Quase loucos, ele agitavam mordedores e objetos diante dela como dois bruxos muito solícitos esperando exorcisar o autismo. Segundo eles, aparentemente, faltava à criança uma overdose de experiências que sua infinita sabedoria « do mundo » sabia trazer para ela. Se eles pudessem utilizar uma alavanca para forçar a abertura de sua alma e entupi-la « de mundo », eles o teriam feito sem dúvida sem mesmo notar a morte de seu paciente na mesa de cirurgia. A menininhgritava e se balançava, tapando as orelhas com seus braços para amortecer o barulho e revirando os olhos para ocultar a matracagem da detonação visual. Eu observava essas pessoas, desejando que eles conhecessem, eles também, o inferno dos sentidos. Eu observava a tortura de uma vítima que não podia se defender numa linguagem compreensível. […] Esses cirurgiões operavam com ferramentas de jardinagem e sem anestesia 7» Sem dúvida se inspiravam num método clássico de aprendizagem, que consiste a apresentar um estímulo em sequencias repetidas, depois a observar a resposta da criança, e a dar uma consequência para reforça-la ou a inibir. É uma aplicação sistemática desses princípios que é defendida pelo método ABA, fundado por Lovaas. Isso durante dois anos, à razão de 40 horas por semana, com crianças cujo consentimento não é pedido, mesmo que saibamos que para maioria eles se ressentem das perguntas como intrusivas e ameaçantes.
Desde sua invenção a psicanálise perturba, revelando que o homem não é o senhor de si mesmo, contrariamente às ilusões da razão, ela não anuncia uma boa notícia. Todavia, a psicanálise perdura apesar das críticas incessantes, o que testemunha antes de tudo sua vitalidade.  Atualmente, é no terreno do autismo que se concentram os ataques contra a psicanálise, vindo em particular do « Autismo France », associação de pais da qual o deputado Fasquelle retoma o argumento em favor do métodoABA, submetendo um projeto de lei visando interditar as práticas psicanalíticas.  Em primeiro lugar, entre essas, o le packing, já praticado por Esquirol, sob o nome de enfaixamento úmido, cinquenta anos antes do nascimento de Freud...   Os partidários do método ABA saíram recentemente de uma controvésia científica legítima produzindo um filme de propaganda severamente condenado pela justiça seguindo as queixas de psicanalistas enganados pela diretora do filme.  O defensor de Sophie Robert, a diretora, tentou fazer valer que esta condenação conduziria à interdição dos filmes de  Mickael Moore se ela fosse confirmada. Mickaël Moore é um diretor americano de filmes engajados (Bowling for Columbine, Farenheit 9/11). Ele sofreu numerosos processos, e ganhou todos. Deve então haver uma diferença entre sua prática e a de Sophie Robert. Duas parecem evidentes. Mickaël Moore se coloca na cena e filma as questões que ele faz a seus interlocutores. Sophie Robert não aparece e corta na montagem certas questões das respostas dadas, o que muda evidentemente o alcance da resposta. Por outro lado,  Mickaël Moore interroga personalidades representativas das opiniões que combate ; enquanto que Sophie Robert interroga certamente algumas personalidades representativas, mas ela convoca além disso psicanalistas que ninguém conhece e que exprimem opiniões que só engajam a si mesmos. Quem quisesse utilizar o mesmo procedimento de propaganda para objetar contra o método ABA iria procurar um educador partidário deste método utilizando ainda as punições corporais 0 e não seria sem dúvida difícil de encontrar – até mesmo um nostálgico dos bons velhos coques  elétricos inicialmente utilizados por Lovaas. Tratar-se-ia certamente de propaganda porque o método defende hoje não maos recorrer ao condicionamento aversivo e às punições. Em poucas palavras,  se Mickaël Moore é tão presente em seus filmes, podemos deduzir que tem orgulho do que faz. Sophie Robert escolheu se esconder. Delion, Golse, Widlôcher e Danon-Boileau denunciam « uma montagem truncada a serviço de uma causa a demonstrar» e visando a lhes ridicularizar8. Os psicanalistas da ECF, Laurent, Stevens e Solano, não recuaram a fazer um processo e a deformação maligna de suas proposições foi confirmada pela justiça.
Os partidários da ABA militam contra uma psicanálise que tanto inventam quanto caricaturizam.Ela culpabilizaria os pais. Esta tese de  Bettelheim sempre citada não era mais unanimidade em seu tempo. Eles recusam desonestamente levar em conta que nenhum psicanalista sério não a sustenta hoje. Eles sublinham que o autismo seria um problema neurobiológico. Ora os dados mais favoráveis a  esta tese põem sempre em evidência que os elementos ligados ao ambiente  interferem com uma possível predisposição genética. Se é um fato bem estabelecido é que diversos métodos aplicados de maneira intensiva (e de preferência no caso a caso) chegam a modificar as condutas dos sujeitos, é preciso sublinhar que não existe nenhum tratamento biológico do autismo e que a descoberta da plasticidade cerebral dá conta da eficiência das práticas psicológicas tanto quanto dessas dos métodos  de aprendizagem.
Por mais bem intencionadas que sejam, esses últimos encontram limites. Sua eficácia, constata o relatório Baghdadli, é geralmente limitada à aquisição de uma competência específica focada pela intervenção estudada, de sorte que ela não implica numa mudança significativa do funcionamento da pessoa que se beneficia da intervenção10.
Certamente, os métodos de ensino invocam a seu favor as estatísticas eloquentes atestando sua eficácia. Sem entrar em intermináveis discussões sobre suas interpretações e sobre o que é realmente captado pelos números, sublinhemos, sobretudo, que é incontestável que os resultados ao menos equivalentes podem ser obtidos pooutros métodos que respeitam mais o sujeito. Se sustentando unicamente ao que contam as mães que conseguiram, pelos métodos empíricos de inspiração diferente, retirando seus filhos do retiro  autísticoparece claramente que a melhora obtida pela doçura e a brincadeira não são menores que aquelas adquiridas pela violência e a coerção. Quando os Copeland descobrem nos anos 60 que recorrer aos “carinhos-recompensas e aos tapas-punições » com sua filha melhora claramente  seu comportamento, eles creem ter encontrado a chave por tanto tempo procurada no tratamento do autismo. « Eles tentaram então fazê-la tocar todos os objetos diante dos quais ela tinha testemunhado terror. Eles eram incontáveis. Na primeira vez, ela gritou com todas as suas forças com muitas repetições, o passo pareceu impossível. Mas enfim eles a puxam solidamente pelo punho e administram-lhe uma correção a cada tentativa de resistência.  Já que tal era o método adotado, era preciso segui-lo. E, efetivamenteao curso de semana extenuantesas reticências de Anne claramente derreteram11» Ora as melhoras obtidas mais recentemente por Anne  Idoux-Thivet com seu filho não foram menores, entretanto ela sempre recusou a « usar o bastão e a cenoura », praticando uma « ludoterapia » orientada pelas reações, as angústias e as manifestações da curiosidade de seu filho12Em poucas palavras, a aproximação desses dois testemunhos opostos atesta que o que pode ser obtido pela violência pode ser melhor ainda pela brincadeira. O tratamento de  Dibs operado por V. Axline, apoiando-se nos jogos de criança acompanhados numa abordagem não diretiva, tinha sido estabelecido desde os anos 1960.
Uma outra mãe de uma criança autista, Hilde de Clercq, considerando a diversidade dos métodos chegou na seguinte constatação, a qual só podemos subscrever,« É bem mais agradável, para todo mundo, seguir o modo de pensar dessas crianças e de ficar positivo, do que impor-lhes se adaptarem e serem confrontados constantemente aos problemas  de comportamentoA melhor estratégia para evitar problemas de comportamento é antecipá-los 13».  Ora, para fazer isso, é incontornável levar em conta a maneira deles de lutar contra a angústia, o que as técnicas de aprendizagem negligenciam.
Todos os métodos de tratamento do autismo possuem seus sucessos e seus fracassos. Esta diversidade é resultado das diferenças consideráveis no funcionamento e nas expectativas dos sujeitos autistas. Entretanto, ela não tem o mesmo posicionamento ético: para os métodos comportamentais e cognitivo-comportamentais a fonte da mudança está situada essencialmente nas mãos do educador, e depois dos pais; em revanche, para os métodos que levam em conta a subjetividade, trata-se de estimular e acompanhar uma dinâmica da mudança inerente à criança. Os métodos psicodinâmicos fazem a aposta de uma responsabilidade do sujeito que pode conduzir até sua independência por vias que devem ser inventadas e não programadas antecipadamente (quem confiaria nos companheiros imaginários de Williams ou na máquina de compressão  de Grandin ?) ; as abordagens educativas operam uma outra escolha: elas trabalham com uma criança que deve ser guiada na rota de um desenvolvimento normalizadosuposto valer para todos. Daí elas chegam certamente com frequência a melhorar a autonomia delas, mas penam para favorecer sua independência.  Numerosos são hoje os autistas de alto nível que relatam como conseguiram a autonomia e a independência, nenhum dentre eles relatou ter sido beneficiado de maneira intensiva de métodos educativos, todos relatam em revanche ter inventado métodos muito originais para tornar compatível o funcionamento autístico deles com o laço social.
   A psicanálise do século XXI não é a caricatura combatida pelo « Autisme France ». A maioria de seus detratores ignora que alguns psicanalistas (certamente sobre esse ponto ainda minoria) consideram que o autismo não é uma psicose, que contra a opinião de Tustin o objeto autístico pode servir de apoio precioso para o tratamento, que as interpretações significantes ou edipianas são a proscrever, que uma « doce forçagem » (A. Di Ciaccia) é necessária para suscitar as aprendizagens, etc. O que fica então da prática analítica? No essencial a capacidade de acompanhar o sujeito em suas invenções originais efetuadas para lidar com sua angústia. Os métodos de aprendizagem conduzem talvez um autista à autonomia, mas nunca à independência em relação à sua família. Esses métodos postulam, aliás abusivamente, que um acompanhamento será sempre necessário. Numerosas são as experiências singulares que vêm contradizer esta asserção. Os testemunhos dos autistas atestam que nunca um autista pode aceder à independência sem ter se beneficiado de uma escuta benevolente e de um respeito de suas invenções.               É coerente que os que buscam apagar a fala dos autistas sejam os mesmos que se aplicam a uma propaganda caricatural para descrever as propostas dos psicanalistas.   

1 Williams D. Si on me touche, je n’existe plus. [1992] Robert Laffont. Paris. 1992, p. 290.
2  Grandin T. Penser en images. [1995] O. Jacob. Paris. 1997, p. 114.
3 Sinclair J. Don’t mourn for us. Autism Network International, Our voice, 1993, 1, 3 ; ou http://web.syr.edu/%7Ejisincla/dontmourn.htm
4 Deshays A. Libres propos philosophiques d’une autiste. Presses de la Renaisssance. Paris. 2009, p. 57.
5 Ibid., pp. 114, 116, 121, 124.
6 Ibid., p. 118.
7 Williams D. Quelqu’un, quelque part. [1994] J’ai Lu. Paris. 1996, pp. 38-39.
9 Témoignage de P. Delion. Dossier CIPPA.(Coordination Internationale entre Psychothérapeutes Psychanalystes s’occupant de personnes avec autisme).  Novembre 2011, p. 39. (www.cippautisme.org)
10 Baghdadli A. Noyer M. Aussiloux C. Interventions éducatives, pédagogiques et thérapeutiques proposées dans l’autisme. Ministère de la Santé et des Solidarités. Direction Générale de l’Action Sociale. Paris. 2007, p. 261.
11 Copeland J. Pour l’amour d’Anne. [1973] Fleurus. Paris. 1974, p. 39.
12 Idoux-Thivet A. Ecouter l’autisme. Le livre d’une mère d’enfant-autiste. Autrement. Paris. 2009.
13 De Clercq H. Dis maman, c’est un homme ou un animal ? Autisme France Diffusion. Mougins. 2002, p. 97.


* Texto extraido da revista "Lacan Cotidiano", número 155

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