Virgínia Bicudo e a psicanálise como lugar de escuta.*
Por Christian Dunker
*Artigo publicado no Blog da Boi Tempo, podendo ser encontrado no link: https://blogdaboitempo.com.br/2018/03/07/virginia-bicudo-e-a-psicanalise-como-lugar-de-escuta/
A primeira forma de psicanálise praticada no Brasil se dá no espaço público, tendo uma jovem mulher negra à sua frente, assumindo forte abrangência social.
Virgínia Leone Bicudo nasceu em 1910 em Ribeirão Preto e morreu em 2003 em São Paulo. Negra e neta de escravos, ela se formou em sociologia. Em 1945 apresenta sua tese Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo onde afirma:
“Quanto mais subimos nas classes sociais, tanto mais aumenta a consciência de cor e tanto maior o esforço despendido para compensar o sentimento de inferioridade. […] Entretanto, a ascensão ocupacional não confere ao preto o mesmo status social do branco, consideradas as restrições demarcadas na linha de cor, ao passo que o mulato garante sua inclusão no grupo dominante, embora em sua personalidade permaneçam as consequências do conflito mental.”1
Esse processo que ela estudou de gradual reconhecimento do peso inesperado da própria cor encontra correlato na experiência profissional de Virgínia Bicudo. Desde a formação, quando entra na escola e se depara com o significante “negrinha”. Depois, no interior da própria carreira de socióloga, quando ela e a amiga Aniela Ginsberg se veem excluídas do relatório da pesquisa promovida pela Unesco para entender a questão da racialidade no Brasil. E, finalmente, quando tem sua prática de psicanalista questionada por não ter formação médica.
Tendo sido a primeira paciente de Adeleid Koch, refugiada austríaca que inaugurou o método de Freud em terras paulistas, ela já no fim dos anos 1930 passa a atuar como “educadora sanitária” e “visitadora psiquiátrica” tendo por função escutar as diferentes versões que rodeavam as crianças em dificuldade. Nos anos 1940, edita um programa de rádio que procurava escutar os problemas enfrentados por pais na educação dos filhos. Portanto, a primeira forma de psicanálise praticada no Brasil se dá no espaço público, tendo uma jovem mulher negra à sua frente, assumindo forte “abrangência social”.
Depois de ter sido tão insistentemente rejeitada pelas instituições de educação, de formação e de profissão, Virgínia passa a se dedicar, nos anos 1960 e 1970, a construir suas próprias instituições de psicanálise, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Concluído o período de estudos em Londres, ela retorna ao Brasil conduzindo com “mão de ferro”2 a psicanálise paulista durante a ditadura civil-militar.
Biógrafos3 e comentadores4 da obra de Virgínia Bicudo perguntam por que ela teria trazido tão pouco de seus estudos seminais sobre sociologia do preconceito de raça para a psicanálise. Seria isso um efeito do branqueamento pelo qual ela teria passado, ou então decorrência da própria ausência de tematização racial no interior da psicanálise? Talvez possamos entender essa curva transformativa como a passagem da preocupação com seu lugar de fala para o que poderíamos chamar de lugar de escuta, como ponto de localização subjetiva e objetiva do conflito. Como aponta Djamila Ribeiro,5 o lugar de fala é uma estratégia que permite dar visibilidade e reconhecimento àquele que fala, particularmente a mulher negra. Há pontos axiais da trajetória de Virgínia na qual o impacto de ser nomeada pelo outro deixa rastros e marcas. Mas há também uma série de declarações que denotam uma grande preocupação de Virgínia em responder a uma pergunta, que é sempre mais ou menos prisioneira da pergunta neurótica, a saber: qual é o meu lugar? Pergunta sintomática desde que acuse a demanda e a expectativa de que o Outro nos diga qual é nosso lugar, processo que socialmente sustenta a segregação. Isso aparece, por exemplo, quando ela fala de sua escolha pela Escola de Sociologia e Política:
“Lá na USP eram os grã-finos e eu não era grã-fina […] Lá não era meu lugar […] Eu queria me aliviar de sofrer. Imaginava que a causa de meu sofrimento fosse problemas sociais, culturais […] desde criança eu sofria preconceito de cor […] no segundo ano do curso encontrei a psicologia do inconsciente de Sigmund Freud. Aí disse: É isso que estou procurando.”
Como observa Ana Paula Musatti Braga, “se os pretos de classe inferior sentiriam mágoa frente à rejeição dos brancos de forma inconsciente, os pretos de classes intermediárias” – nas quais ela mesma se incluía – “sentiriam ódio, mágoa e ressentimento pela rejeição do branco, conscientemente reprimidos por medo de uma rejeição ainda mais acentuada.”6 Haveria assim uma espécie de duplicação do sofrimento na negritude, derivado da sobreposição de dois processos de negação. Primeiro há a negação que cria o ressentimento primário, associado com as primeiras experiências de apercepção da raça, depois sobrevém a negação que o neutraliza com uma “rejeição mais acentuada”.
A tese antecipa certos aspectos da leitura de Jessé de Souza de que o preconceito brasileiro incide sobre a cor, mas também sobre a forma como alguém pode “esconder” a sua cor por meio de sua personalidade.7 Esse duplo processo induz uma espécie de paradoxo pelo qual a formação de uma personalidade sensível, que assimila a gramática de reconhecimento pela educação e pelo estilo de vida sem que haja uma superação do preconceito, acaba por fortalecer seu peso na experiência subjetiva, confirmando e acentuando cada vez mais o sentimento de inadequação. À medida que o sujeito ascende socialmente ele reconhece cada vez mais o peso diferenciador da cor, tornando o conflito subjetivo ainda maior. E, inversamente – poderíamos acrescentar aqui –: à medida que o sujeito progride na sua análise, ele reconhece cada vez mais o peso proporcional de sua própria assimilação sintomática ao preconceito social, tornando o conflito objetivo ainda mais intenso.
No caso de Virgínia, essa dupla incidência do preconceito parece ter se focado ao menos na superfície nas críticas contra sua condição de não médica, deixando em segundo plano sua condição de mulher negra de origem interiorana. No I Congresso Latino-americano de Saúde Mental que ela ajudara a organizar junto com Durval Marcondes, ela é acusada publicamente por psiquiatras (todos homens):
“Eu estava sentada e todos os médicos de pé, todos gritando: ‘Absurdo! Psicanalistas não médicos!’ Foi horrível! Olha que eu quase me suicidei por isso. Você ouvir outras pessoas dizendo: ‘Você é charlatã!’ Ah! Você não fica de pé! Você vai pra casa e quer morrer.”8.
Ou seja, voltamos ao tema do lugar que não lhe pertence. Como se voltar para casa, fosse o destino e o lugar da mulher, negra e não médica.
Mas ela não desistiu. Nos anos 1960 funda o embrião da futura Sociedade Brasileira de Psicanálise e depois o grupo Psicanalítico de Brasília alternando residências em uma época na qual isso não era muito comum. Virgínia enriquece, passa a ser requisitada por ministros e senadores e desenvolve uma carreira fulgurante na psicanálise. Contudo, isso parece ter sido precedido por um movimento de deslocalização subjetiva. Uma espécie de inversão de seu lugar de fala, como negra “desvalida” e “hipossuficiente”, para o lugar de escuta assegurada, como analista de sua própria experiência, com mãos e ouvidos cor de ferro. Essa espécie de cura para a demanda de reconhecimento, que explica o caráter destruidor das experiências de nomeação (“negrinha”), de destituição de autoria (relatório Anhembi-Unesco) e de imputação de charlatanismo (pelos psiquiatras no Congresso Latino-americano de Saúde Mental), parece ter decorrido da reversão do próprio complexo provincial brasileiro. Lembremos que a grande virada acontece quando ela volta de Londres, tendo conhecido Melanie Klein, Bion e Virgínia Wolf, participado do grupo de Bloomsbury, das querelas psicanalíticas do pós-guerra, bem como feito sua reanálise com Frank Phillips. Ungida pelos mestres e avalizada por nosso próprio provincianismo colonial ela agora podia ter um lugar, ainda que não fosse o seu.
Na reconstrução das origens da experiência psicanalítica brasileira que levei a cabo no livro Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros, observei que a psicanálise possui uma origem bífida em São Paulo. De um lado está Frank Philipps, um playboy australiano de costumes excêntricos e farto na ostentação de sua riqueza. Do outro lado temos Adelheid Koch, uma pobre refugiada judia, com dificuldades no manejo do português, embaraçada com a comunidade de homens psiquiatras. Notemos que Virgínia fez análise com os dois. Por hipótese, é como se na primeira análise ela tivesse enfrentado a mágoa e o ódio, o reconhecimento da partilha complexa entre neurose e partilha social da segregação. Já a segunda análise envolve o contexto específico de colocar-se como estrangeira, sem lugar, incerta quanto aos meios para pagar as contas, em meio a uma viagem para outra língua. Aqui reforça-se a segunda negação constitutiva da experiência racial: a rejeição mais acentuada, que lhe permitiu a desenvoltura social necessária.
No seu artigo de 1972 sobre a “A incidência da realidade social no trabalho analítico” ela dirá que “a orientação técnica, que preconiza ao analista abster-se de incluir na situação analítica sua realidade social ideológica, não implica alienação social”.9 Um bom exemplo de como o conflito entre as duas vertentes da experiência de sofrimento estão juntas, sem, ao mesmo tempo, encontrar uma unidade.
Contudo, há um terceiro tempo na vida de Virgínia. Junto com a velhice reaparece a questão da negritude. Ela passa a usar turbantes e falar do cabelo como marcador social. Readquire sua casa dos anos 1960 como parte de um movimento de voltar a um dado lugar. É aqui que talvez ela encontre seu lugar de escuta, para o conjunto de uma trajetória de vida. É o tempo no qual problemas familiares retornam de maneira inesperada. Nas palavras de Janaína Damasceno Gomes, “ela não teve uma morte branca, ela morreu como uma mulher negra”10. Mas o gesto que acusa uma solução tanto para a demanda de ter um lugar, dado pelo Outro, quanto para a realização de seu próprio lugar, enquanto conquista simbólica e material, aparece nas instruções que ela escreve em 1983 sobre o destino de seu corpo depois da morte:
“[…] solicito fazer cumprir meu desejo de ser incinerada em lugar de ser enterrada.
O corpo sem vida retorna ao mundo inorgânico e em vez de tomar espaço em cemitério é mais inteligente que seja transformado em um punhado de cinzas atirado à terra.
Sejamos razoáveis. Estaremos sempre juntos! Somos da natureza.
O corpo sem vida retorna ao mundo inorgânico e em vez de tomar espaço em cemitério é mais inteligente que seja transformado em um punhado de cinzas atirado à terra.
Sejamos razoáveis. Estaremos sempre juntos! Somos da natureza.
São Paulo, 22 de dezembro, 1983″
É por isso que podemos dizer que Virgínia Bicudo não é apenas a primeira mulher não médica a se tornar psicanalista no Brasil, mas a primeira psicanalista brasileira, que nascida negra, tornou-se sem cor, para recuperar sua negritude como experiência de escuta.
Notas
1 Virgínia L. Bicudo, Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo (1938), edição organizada por Marcos C. Maio, São Paulo, Sociologia e Política, 2010, p.160.
2 Valadares de Oliveira, Carmen Lúcia (2006) História da Psicanálise em São Paulo. São Paulo: Escuta.
3 Ana Paula Musatti Braga, “Pelas trilhas de Virgínia Bicudo: psicanálise e relações raciais em São Paulo”, Revista Lacuna, 6 de dezembro de 2016.
4 Tânia Mara Campos Almeida, “Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo”, Cad. Pagu no.36, Campinas Jan./June 2011
5 Djamila Ribeiro, O que é lugar de fala?, Belo Horizonte, Letramento, 2017.
6 Ana Paula Musatti Braga, p. 8.
7 Jessé Souza, A Elite do Atraso. Rio de Janeiro, Leya, 2017.
8 Virgínia Bicudo, Projeto memória Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
9 Virgínia Bicudo, “A incidência da realidade social no trabalho analítico”. Em: Revista Brasileira de Psicanálise, Associação Brasileira de Psicanálise vol VI, n ¾ São Paulo, 1972.
10 Janaína Damasceno Gomes, Os segredos de Virgínia estudos de atitudes raciais em São Paulo(1945-1955) Tese Doutorado FFLCH, USP, 2013.
2 Valadares de Oliveira, Carmen Lúcia (2006) História da Psicanálise em São Paulo. São Paulo: Escuta.
3 Ana Paula Musatti Braga, “Pelas trilhas de Virgínia Bicudo: psicanálise e relações raciais em São Paulo”, Revista Lacuna, 6 de dezembro de 2016.
4 Tânia Mara Campos Almeida, “Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo”, Cad. Pagu no.36, Campinas Jan./June 2011
5 Djamila Ribeiro, O que é lugar de fala?, Belo Horizonte, Letramento, 2017.
6 Ana Paula Musatti Braga, p. 8.
7 Jessé Souza, A Elite do Atraso. Rio de Janeiro, Leya, 2017.
8 Virgínia Bicudo, Projeto memória Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
9 Virgínia Bicudo, “A incidência da realidade social no trabalho analítico”. Em: Revista Brasileira de Psicanálise, Associação Brasileira de Psicanálise vol VI, n ¾ São Paulo, 1972.
10 Janaína Damasceno Gomes, Os segredos de Virgínia estudos de atitudes raciais em São Paulo(1945-1955) Tese Doutorado FFLCH, USP, 2013.
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