Mulher: sintoma do homem?*
Por Flavia Bonfim
*Texto publicado na Correio Express - Revista online da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, número 6, out de 2018. Link: https://www.ebp.org.br/correio_express/006/DC_FlaviaBonfim.html
O
aforismo lacaniano “A mulher é o sintoma do homem”, que aqui me sirvo para
intitular esse trabalho nos moldes de uma pergunta, demarca o recorte que elegi
a partir da pesquisa lançada através do Cartel sobre o livro de Miller, “O
parceiro-sintoma”[1].
De modo mais preciso: Como podemos fazer uma leitura dessa formulação de Lacan?
Em seu texto “Joyce, o Sintoma”, Lacan
propõe que o sintoma é um evento corporal, e elucida: “Uma mulher, por exemplo,
é o sintoma de um outro corpo.” (2003 [1975], p. 565), para em seguida
mencionar que é com o homem que ela se sintomatiza. Assim, D. Laurent (2006)
nos esclarece que a formulação da mulher como sintoma é para ser lida a partir
dos avanços do último ensino lacaniano. Russo & Vallejo (2011) apontam que
a mulher como sintoma supõe uma nova definição de sintoma que implica na junção
entre sintoma e fantasia. Ao final do ensino de Lacan, o sinthoma do qual
apreendemos de Joyce não apresenta estatuto de disfunção, mas pelo contrário,
se coloca como uma função, como uma maneira de gozar do inconsciente.
A partir dessa pequena introdução,
podemos seguir com o percurso proposto por Miller para discutir esse tema. Ele apresenta
o sintagma parceiro-sintoma, mais precisamente essa fórmula (X-sitoma), como
uma fórmula milagrosa na medida em que desperta conceitos fundamentais da
psicanálise. O que vemos, então. ser despertado e redimensionado nesta
discussão em torno da mulher como sintoma do homem é o conceito de sujeito e
Outro.
No primeiro ensino de Lacan, o sujeito
corresponde a um elemento mortificado pela ação do significante. Seu esforço em
destacar e formalizar a dimensão simbólica, esvaziada pelos pós-freudianos,
teve como consequências não deixar em evidência elementos que evocavam o
imaginário, o pulsional e o real. É somente no último ensino de Lacan que a
dimensão do corpo, por exemplo, ganha maior relevância, bem como verificamos uma
nova proposição conceitual através da substituição do termo sujeito por
falasser – que corresponde a noção de sujeito mais o corpo, o sujeito mais a
substância gozante.
No que se refere ao Outro, do mesmo modo
assistimos uma reformulação na medida em que se por um lado ele comporta o
lugar do significante, ele também deve ser representado por um corpo. Inicialmente,
no ensino lacaniano, temos um Outro como essencialmente um lugar simbólico, em
seu caráter maquinal. Ao passo que ao final do seu ensino, já não é possível
identificar o Outro como unicamente um lugar simbólico, visto que também admite
traços do vivo e do carnal. O Outro não é um corpo mortificado, é um corpo
vivo. Posto isto, Miller nos lembra uma frase que Lacan por vezes se utilizava
para falar do Outro: “é necessário que o Outro seja representado por um corpo.”
(ibid., p. 406)
Assim, o Outro passa a ser também
representado por um corpo sexuado, no qual se estabelece entre o sujeito e o
Outro uma parceria. Nesse sentido, se coloca a questão da relação sexual – perspectiva,
esta, que estava apagada na relação entre o sujeito e o Outro. No nível da
fala, há uma relação entre o sujeito e o Outro possibilitada pela dimensão
significante. O Outro tem um código e o sujeito está numa relação com ele. Ao
passo que no nível sexual, não há relação. Ou dizendo de outro modo, a relação
passa pelo gozo do corpo, passa pelo sintoma. (MILLER, 2011)
Assim, no seu livro “O osso de uma análise”, Miller é categórico ao propor a definição
de parceiro-sintoma nesses termos: “a relação do parceiro supõe que o Outro
torna-se sintoma do falasser, isto é, torna-se meio de gozo.” (2015, p. 89) Miller
(2011) delimita que o sintoma é um meio de gozo e o Outro ao qual o sujeito
está vinculado é sintoma na medida que é meio de gozo do seu próprio corpo. O
sintoma, continua Miller, é um modo de gozar do inconsciente, da articulação
significante, e por outro lado, é um modo de gozar do corpo do Outro. Ele ainda
esclarece que por “corpo do Outro” devemos entender ao mesmo tempo o corpo
próprio, com sua dimensão de alteridade, mas também o corpo do outro como meio
de gozo do corpo próprio. A partir disso, ele introduz a pergunta: “De que
maneira o parlêtre se serve do Outro,
como representado por seu corpo, para gozar? E responde: “O gozo se produz
sempre no corpo de Um, mas através do corpo do Outro. (MILLER, 2011, p. 411)
Pensando especificamente o caso do
homem, seu modo de gozar implica que o parceiro responda a um modelo, podendo
chegar a exigência de um detalhe. Seu molde de parceria com o Outro está
determinado pelo objeto pequeno a.
Miller (ibid.) destaca que o a é uma
unidade de gozo discreta, no sentido que está separado, destacado. É, portanto,
uma forma fetichista se operar com a relação sexuada. O objeto fetiche toma a
forma de um elemento que tem um caráter de unidade, de permanência – traços
uniformes. Mais ainda, o objeto fetiche é um objeto que não fala, inerte,
assegurado por um exigência de gozo do lado do homem que admite a possibilidade
da palavra ficar fora do circuito. Há, portanto, uma erótica do silêncio. Isso,
porém, se contrapõe ao modo erotomaníaco de amar da mulher, no qual é necessário
que o parceiro fale. (Ibid., ibid.)
Discutindo esse modo fetichista do homem, Caldas (2008)
comenta que para o homem se aproximar de uma mulher é preciso destituí-la do
falo, afastando-a da figura do Outro primordial não barrado, ao passo que para
desejá-la há de identificar nela algum atrativo fálico. Se encontramos nisto
uma característica fetichista no amor, é porque identificamos o privilégio da
função do véu e de recursos imaginários utilizados no meio feminino para
recobrir a falta-a-ter por meio de uma aparência baseada no brilho fálico. (Ibid.)
Paradoxalmente, esta miragem está ali para assinalar o que não se tem,
para indicar a castração do objeto. Portanto, Russo & Vallejo (2011)
salientam que a ameaça de perder o falo
configura uma das facetas da posição masculina e frente a isso, eis uma solução:
encontrar na mulher um atributo fálico – o que inviabiliza de apreender corpo
da mulher como um todo.
Diante disso, podemos começar a esboçar
uma resposta para questão apresentada na introdução deste trabalho. A mulher funciona
como sintoma por ter consonância com a forma pela qual o homem goza no seu
inconsciente. Posto isso, a noção de mulher-sintoma aponta para a dimensão real
do sintoma, como algo da ordem do funcionamento, necessário ao circuito
pulsional. O sintoma, nesse sentido, é um aparato que articula gozo e desejo de
modo que a mulher teria para o homem esse valor – aquela que ao ocupar o lugar
de causa do seu desejo lhe permite a articulação entre seu gozo e seu desejo.
Assim, a mulher-sintoma não é aquele que poderíamos identificar com a capaz de
fazer adoecer um homem, mas a mulher como sintoma de um homem tem relação com a
constituição desse sujeito, com aquilo que o enoda e lhe garante uma
consistência, permitindo estruturar sua relação com o gozo. (RUSSO & VALLEJO, 2011) É, portanto, uma
junção entre sintoma e fantasia.
Referências:
CALDAS, Heloisa. Saber
fazer com a não-relação. In:
ALBERTI, Sonia (org.) A sexualidade na
aurora do século XXI. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2008.
LACAN,
Jacques. Joyce, o sintoma. In: Outros
Escritos (1975). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LAURENT,
Dominique. O sujeito e seus parceiros libidinais: do fantasma ao sintoma. In: Asephalus – Revista Eletrônica do Núcleo
Sephora. – Rio de Janeiro, n. 2, maio-out
2006, ano 1. Disponível em: http://www.isepol.com/asephallus/numero_02/traducao.htm. Acesso em:
10/07/2018.
MILLER,
Jacques-Alain. El partinaire-sintoma. Buenos
Aires: Paidós, 2011.
______.
O osso de uma análise + o inconsciente e
o corpo falante. Rio de Janeiro: Zahar Ed, 2015.
RUSSO, Laura &
VALLEJO, Laura. El amor y lo femenino. Buenos
Aires: Tres Haches, 2011.
[1] Cartel em torno tema
“Parceiro-Sintoma”. Integrantes: Ana Lucia Garcia (mais-um) e Lucia Mariano,
Simone Ravizinni, Flavia Bonfim e Maria Elizabeth da Costa Araújo
(cartelizantes)
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