Psicóloga / Psicanalista Flavia Bonfim - Atendimento - Cursos - Eventos - Textos
Contatos: (21) 98212-6662 / 2613-3947 (Secretária eletrônica)

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Texto: "Mulher: sintoma do homem?"




Mulher: sintoma do homem?*

Por Flavia Bonfim 

*Texto publicado na Correio Express - Revista online da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, número 6, out de 2018. Link: https://www.ebp.org.br/correio_express/006/DC_FlaviaBonfim.html

O aforismo lacaniano “A mulher é o sintoma do homem”, que aqui me sirvo para intitular esse trabalho nos moldes de uma pergunta, demarca o recorte que elegi a partir da pesquisa lançada através do Cartel sobre o livro de Miller, “O parceiro-sintoma”[1]. De modo mais preciso: Como podemos fazer uma leitura dessa formulação de Lacan?
Em seu texto “Joyce, o Sintoma”, Lacan propõe que o sintoma é um evento corporal, e elucida: “Uma mulher, por exemplo, é o sintoma de um outro corpo.” (2003 [1975], p. 565), para em seguida mencionar que é com o homem que ela se sintomatiza. Assim, D. Laurent (2006) nos esclarece que a formulação da mulher como sintoma é para ser lida a partir dos avanços do último ensino lacaniano. Russo & Vallejo (2011) apontam que a mulher como sintoma supõe uma nova definição de sintoma que implica na junção entre sintoma e fantasia. Ao final do ensino de Lacan, o sinthoma do qual apreendemos de Joyce não apresenta estatuto de disfunção, mas pelo contrário, se coloca como uma função, como uma maneira de gozar do inconsciente.
A partir dessa pequena introdução, podemos seguir com o percurso proposto por Miller para discutir esse tema. Ele apresenta o sintagma parceiro-sintoma, mais precisamente essa fórmula (X-sitoma), como uma fórmula milagrosa na medida em que desperta conceitos fundamentais da psicanálise. O que vemos, então. ser despertado e redimensionado nesta discussão em torno da mulher como sintoma do homem é o conceito de sujeito e Outro.
No primeiro ensino de Lacan, o sujeito corresponde a um elemento mortificado pela ação do significante. Seu esforço em destacar e formalizar a dimensão simbólica, esvaziada pelos pós-freudianos, teve como consequências não deixar em evidência elementos que evocavam o imaginário, o pulsional e o real. É somente no último ensino de Lacan que a dimensão do corpo, por exemplo, ganha maior relevância, bem como verificamos uma nova proposição conceitual através da substituição do termo sujeito por falasser – que corresponde a noção de sujeito mais o corpo, o sujeito mais a substância gozante.
No que se refere ao Outro, do mesmo modo assistimos uma reformulação na medida em que se por um lado ele comporta o lugar do significante, ele também deve ser representado por um corpo. Inicialmente, no ensino lacaniano, temos um Outro como essencialmente um lugar simbólico, em seu caráter maquinal. Ao passo que ao final do seu ensino, já não é possível identificar o Outro como unicamente um lugar simbólico, visto que também admite traços do vivo e do carnal. O Outro não é um corpo mortificado, é um corpo vivo. Posto isto, Miller nos lembra uma frase que Lacan por vezes se utilizava para falar do Outro: “é necessário que o Outro seja representado por um corpo.” (ibid., p. 406)
Assim, o Outro passa a ser também representado por um corpo sexuado, no qual se estabelece entre o sujeito e o Outro uma parceria. Nesse sentido, se coloca a questão da relação sexual – perspectiva, esta, que estava apagada na relação entre o sujeito e o Outro. No nível da fala, há uma relação entre o sujeito e o Outro possibilitada pela dimensão significante. O Outro tem um código e o sujeito está numa relação com ele. Ao passo que no nível sexual, não há relação. Ou dizendo de outro modo, a relação passa pelo gozo do corpo, passa pelo sintoma. (MILLER, 2011)
Assim, no seu livro “O osso de uma análise”, Miller é categórico ao propor a definição de parceiro-sintoma nesses termos: “a relação do parceiro supõe que o Outro torna-se sintoma do falasser, isto é, torna-se meio de gozo.” (2015, p. 89) Miller (2011) delimita que o sintoma é um meio de gozo e o Outro ao qual o sujeito está vinculado é sintoma na medida que é meio de gozo do seu próprio corpo. O sintoma, continua Miller, é um modo de gozar do inconsciente, da articulação significante, e por outro lado, é um modo de gozar do corpo do Outro. Ele ainda esclarece que por “corpo do Outro” devemos entender ao mesmo tempo o corpo próprio, com sua dimensão de alteridade, mas também o corpo do outro como meio de gozo do corpo próprio. A partir disso, ele introduz a pergunta: “De que maneira o parlêtre se serve do Outro, como representado por seu corpo, para gozar? E responde: “O gozo se produz sempre no corpo de Um, mas através do corpo do Outro. (MILLER, 2011, p. 411)
Pensando especificamente o caso do homem, seu modo de gozar implica que o parceiro responda a um modelo, podendo chegar a exigência de um detalhe. Seu molde de parceria com o Outro está determinado pelo objeto pequeno a. Miller (ibid.) destaca que o a é uma unidade de gozo discreta, no sentido que está separado, destacado. É, portanto, uma forma fetichista se operar com a relação sexuada. O objeto fetiche toma a forma de um elemento que tem um caráter de unidade, de permanência – traços uniformes. Mais ainda, o objeto fetiche é um objeto que não fala, inerte, assegurado por um exigência de gozo do lado do homem que admite a possibilidade da palavra ficar fora do circuito. Há, portanto, uma erótica do silêncio. Isso, porém, se contrapõe ao modo erotomaníaco de amar da mulher, no qual é necessário que o parceiro fale. (Ibid., ibid.)
Discutindo esse modo fetichista do homem, Caldas (2008) comenta que para o homem se aproximar de uma mulher é preciso destituí-la do falo, afastando-a da figura do Outro primordial não barrado, ao passo que para desejá-la há de identificar nela algum atrativo fálico. Se encontramos nisto uma característica fetichista no amor, é porque identificamos o privilégio da função do véu e de recursos imaginários utilizados no meio feminino para recobrir a falta-a-ter por meio de uma aparência baseada no brilho fálico. (Ibid.) Paradoxalmente, esta miragem está ali para assinalar o que não se tem, para indicar a castração do objeto. Portanto, Russo & Vallejo (2011) salientam que  a ameaça de perder o falo configura uma das facetas da posição masculina e frente a isso, eis uma solução: encontrar na mulher um atributo fálico – o que inviabiliza de apreender corpo da mulher como um todo.
Diante disso, podemos começar a esboçar uma resposta para questão apresentada na introdução deste trabalho. A mulher funciona como sintoma por ter consonância com a forma pela qual o homem goza no seu inconsciente. Posto isso, a noção de mulher-sintoma aponta para a dimensão real do sintoma, como algo da ordem do funcionamento, necessário ao circuito pulsional. O sintoma, nesse sentido, é um aparato que articula gozo e desejo de modo que a mulher teria para o homem esse valor – aquela que ao ocupar o lugar de causa do seu desejo lhe permite a articulação entre seu gozo e seu desejo. Assim, a mulher-sintoma não é aquele que poderíamos identificar com a capaz de fazer adoecer um homem, mas a mulher como sintoma de um homem tem relação com a constituição desse sujeito, com aquilo que o enoda e lhe garante uma consistência, permitindo estruturar sua relação com o gozo.  (RUSSO & VALLEJO, 2011) É, portanto, uma junção entre sintoma e fantasia.


Referências:

CALDAS, Heloisa. Saber fazer com a não-relação. In: ALBERTI, Sonia (org.) A sexualidade na aurora do século XXI. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2008.
LACAN, Jacques. Joyce, o sintoma. In: Outros Escritos (1975). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

LAURENT, Dominique. O sujeito e seus parceiros libidinais: do fantasma ao sintoma. In: Asephalus – Revista Eletrônica do Núcleo Sephora. – Rio de Janeiro, n. 2,  maio-out 2006,  ano 1. Disponível em: http://www.isepol.com/asephallus/numero_02/traducao.htm. Acesso em: 10/07/2018.

MILLER, Jacques-Alain. El partinaire-sintoma. Buenos Aires: Paidós, 2011.

______. O osso de uma análise + o inconsciente e o corpo falante. Rio de Janeiro: Zahar Ed, 2015.

RUSSO, Laura & VALLEJO, Laura. El amor y lo femenino. Buenos Aires: Tres Haches, 2011.




[1] Cartel em torno tema “Parceiro-Sintoma”. Integrantes: Ana Lucia Garcia (mais-um) e Lucia Mariano, Simone Ravizinni, Flavia Bonfim e Maria Elizabeth da Costa Araújo (cartelizantes)

Nenhum comentário:

Postar um comentário