Uma leitura inaugural sobre a escrita em psicanálise:
Considerações sobre “O Seminário sobre a ‘A carta roubada’”
Por Flavia Bonfim
O
tema da escrita permitiu a Lacan produzir avanços teóricos no campo
psicanalítico. Entretanto, podemos perceber que o percurso lacaniano sobre tal
temática não é linear, nem se expressa por meio de uma dimensão desenvolvimentista,
estando mais na ordem de uma construção, elaboração. Ao longo de seus
seminários, Lacan apresentou diferentes propostas sobre a discussão da escrita
em psicanálise, sendo possível enumerar alguns textos pontuais a cada uma delas,
a saber: 1) “O Seminário sobre ‘A carta roubada’” e “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” 2) Seminário
9 - A identificação e 3) Lituraterra e Seminário 18 – De um discurso que não fosse do semblante.
Não pretendo aqui percorrer todos esses textos, mas
proponho tomar “O Seminário sobre ‘A carta roubada’” como ponto inaugural para
uma leitura sobre a escrita, via de discussão para a relação entre letra e
significante, mais especificamente sobre o modo de funcionamento deste último. Este
seminário de Lacan data de 1956 e remota o conto de Edgar Alan Poe, intitulado “A
carta roubada”. O conto de Poe diz de uma carta, que, apesar de não ter seu
conteúdo revelado, supõe-se que denuncia os deslizes da Rainha. Tal carta foi
roubada/desviada e todos os personagens (Rainha, Rei, Ministro, polícia e
investigador Dupin) encontram-se numa trama onde se coloca em jogo a posse dela.
Ao servir-se do conto, Lacan (1998 c
[1956] nos fala de duas cenas: a cena primitiva e a segunda cena, que demarca
uma repetição. A primitiva diz da cena onde se encontram a Rainha, o Rei e o
Ministro. A Rainha, contando com a desatenção do Rei, deixa a carta à mostra
sobre a mesa, virada para baixo. A carta e a desarvoramento da Rainha, porém,
não escapam aos olhos do Ministro. Ele rouba a carta; a Rainha o vê, mas não
intervém para não despertar a atenção do Rei. Já a segunda cena, passa-se no
gabinete do Ministro. Este, para despistar a polícia, deixa a carta roubada
sobre o porta-cartas, simulando ser um envelope sem importância. Dupin
reconhece que se trata da carta roubada, apodera-se dela e a substitui por uma
outra factícia sem que o Ministro perceba. A carta deixada por Dupin, porém,
contém uma mensagem para que o Ministro identifique o autor do novo desvio.
Por meio destas duas cenas, Lacan
(ibid.) extrai os três tempos lógicos a partir do qual uma decisão é concluída
no momento de um olhar, bem como ele situa os três lugares que a carta atribui
aos personagens do conto. O primeiro é um olhar que nada vê – olhar do Rei e da
polícia. Já segundo é olhar que vê que o primeiro nada vê e se engana por ver
encoberto o que ele oculta – olhar da Rainha e do Ministro. O terceiro é olhar
que vê que os dois deixaram descoberto o que era para esconder, podendo assim,
possuir ele próprio a carta – olhar do Ministro e do Dupin.
Com isso, Lacan pôde destacar como tais posições se
revezam nos três tempos, apontando, assim para o deslocamento da repetição e concluindo
que “seu deslocamento é determinado pelo lugar que vem a ocupar em seu
trio esse significante puro que é a carta roubada. É isso que para nós o confirmará
como automatismo de repetição.” (ibid., p. 18) Este automatismo, diz
Lacan (ibid.), extrai seu princípio da insistência da cadeia significante. Sendo
assim, o conto vem apontar para aquilo que está em causa nas formações do inconsciente
e é, por isso, que Lacan retém o texto “A carta roubada” na medida em que pode
abordar os efeitos do funcionamento de uma carta onde está implicada a
incidência do significante.
Lacan refere-se à carta como letra, utilizando-se
da própria língua francesa para apontar tal consideração. Vale lembrar que “lettre” em francês designa tanto carta
quanto letra. Desta carta, pode-se extrair efeitos (repetição, endereçamento e
submissão) que advém não do seu conteúdo, mas dela enquanto significante –
sendo justamente isso que Lacan procura pontuar. Mais precisamente, ela
funciona por que nada se sabe do seu conteúdo. Daí, a noção de carta/letra.
Trata- se, nesse sentido, da precedência do significante sobre o significado.
Lacan nos diz que “a singularidade da carta/letra, que, como indica o título, é
o verdadeiro sujeito do conto: é por
poder sofrer um desvio que ela tem um trajeto que lhe é próprio. Traço onde se
afirma, aqui, a incidência de significante.” (ibid., p. 33, grifo do autor)
A partir de tais colocações, podemos perceber que
Lacan, mesmo se utilizando do recurso letra, não faz distinção entre ela e o
significante. “Mas essa letra, como se há de tomá-la aqui? Muito simplesmente
ao pé da letra. Designamos por letra este suporte material que o discurso
concreto toma emprestado da linguagem.” (LACAN, 1998 a, p. 498) Isto é: neste
momento do percurso lacaniano, a letra funciona como suporte material da
linguagem, necessário ao jogo significante, mas não se diferencia deste último,
sendo ela apresentada neste seminário para especificar o que é da ordem significante.
É enquanto velada pelo Ministro que a carta/letra se torna significante. Sobre
isso, Ana Costa escreve que “O “desvio” da carta/letra é o que
lhe confere o caráter significante, constituindo o caminho da repetição. Nesse
ponto pode-se tomar o envelope da carta, revirado pelo ministro, como esse ato
de velamento do corpo, próprio ao significante.” (2006, p. 12)
Convém assinalar que a letra, nesse
seminário, está mais do lado do simbólico do que do real - como será, anos
depois, a proposta lacaniana em “Lituraterra” e Seminário 18. Para acompanharmos essa modificação, convém
não ignorarmos o fato de que o ensino de Lacan, em seu início, tem como ponto
de partida sua confiança no simbólico e que somente mais tarde assistimos um cercamento mais rigoroso da categoria real, para
ao seu final propor uma
equivalência entre os três registros. Tanto
em Lituraterra quando em De um discurso
que não fosse do semblante, Lacan mais uma vez recorre ao conto da carta
roubada, não para reformular nem contradizer as colocações que havia
apresentado até então, mas para introduzir um a mais, produzindo, assim, um
salto teórico. Ele nos apresenta a letra nesses textos como litoral, como
aquilo que cai do sitio do sujeito na linguagem e faz efeito sobre o corpo. A letra
não está mais situada do lado do significante, pelo contrário, ela faz litoral
entre “campos estrangeiros”. São eles: saber e gozo, simbólico e real. Mais uma
vez recorrendo às considerações de Costa (2008), a psicanalista nos escreve que,
no texto “Lituraterra”, Lacan faz um aproximação entre letra e gozo, situando
isso por meio de dois pontos: letra como produção de resto (deslizamento de letter para litter, letra/carta para lixo) e como buraco no saber.
Realizada as devidas considerações, retomemos
ao texto “O seminário sobre ‘A carta roubada’”. Além do efeito de repetição,
temos o aspecto do endereçamento que o conto nos coloca. Lacan lança-nos uma
questão a esse respeito, a saber: “Então, a carta/letra sobre a qual quem a
enviou ainda conserva direitos não pertenceria àquele a quem se dirige? Ou será
que este último nunca foi o verdadeiro destinatário?” (1998 c [1958], p. 30) A
carta é endereçada à Rainha, porém, tornou-se inerente a ela o desvio, estar à
mostra para ocultar-se, ser procurada e achada - sendo precisamente isto o
aspecto de significante em seu endereçamento. É, portanto, uma carta que sempre
chega ao seu destino, observa Lacan (ibid.), todavia, seu destino não é naquele
a quem ela foi endereçada, mas no emissor que recebe do receptor sua própria
mensagem sob forma invertida, naquele que a remete a partir do Outro. Isso nos
permite dizer, com Lacan, que o endereçamento é ao sujeito, na medida em que
este não é aquele que fala, mas é exatamente aquele que é falado na cadeia
significante, aquele que é constituído pelo Outro. Relançando-se sobre “A carta
roubada” em momento mais avançado do seu ensino, Lacan ratifica tal
consideração ao dizer que “não é a mulher cujo endereço a carta satisfaz, ao
chegar ao seu destino, mas sim ao sujeito, ou seja, para redefini-lo” (2009
[1971], p.125)
Para encerrar, tratemos do efeito da
submissão, que poderia ser traduzido como: “a carta feminiza”. Nas palavras de
Lacan: “ela feminiza aqueles que revelam estar numa certa posição – a de
estarem à sombra dela.” (2009 [1971], p.125) Deter a carta implica estar
submetido a ela, ficar a sua sombra. A sombra, por sua vez, refere-se ao
feminino, logo, ter é carta é portar seu enigma.
A carta - melhor caberia dizer que nesse momento do
ensino de Lacan, a letra – está do lado do falo, do significante. A carta foi
falicizada. Quem a detém, acha que tem o poder, mas não tem.
Pelo contrário, fica numa posição de submissão, de objeto. Com isso, suponho
que poderíamos dizer que o falo entra nesse circuito na medida em que ele, em
sua vertente imaginária é, ao mesmo tempo, o que aponta para o poder, o que faz
destaque, o que produz luz; mas, enquanto significante, produz sombra,
velamento. Ou seja, o falo entra no circuito a partir do ato que cada
personagem faz da carta/letra.
O falo, por sua vez, nos aponta Lacan (1998
b [1958]), só pode exercer seu papel enquanto velado, apontando, assim, para
seu estatuto de significante. Do mesmo modo, podemos dizer sobres os efeitos da
carta, que só existem porque ela foi tomada como significante. Quem tem
a carta, oculta não ter. Talvez aqui pudéssemos aproximar a noção de presença e
ausência evocada pela dimensão significante, conferida no jogo do For-Da. Por
outro lado, a carta só tem valor na medida em que seu conteúdo não é revelado. Um
outro modo de dizer é que: quem está com a carta, não pode fazer uso dela. É
somente enquanto significante que ela funciona.
Quanto ao efeito de submissão, me ocorre
o texto “A significação do falo” onde Lacan nos diz que o fato da feminilidade
encontrar seu refúgio na máscara fálica “tem a curiosa conseqüência de fazer
com que, no ser humano a própria ostentação viril pareça feminina.” (1998 b
[1958], p. 702) Ostenta-se ter o poder, mas a posição é de objeto em relação ao
funcionamento da carta. “Pois, ao entrar no jogo como aquele que esconde, é do
papel da Rainha que ele tem que revestir, inclusive nos atributos da mulher e
da sombra, tão propícios ao ato de esconder.” (LACAN, 1998 [1956], p. 35) Não é
sem importância, como lembra Lacan (1998 [1956]), que
para disfarçar a carta, o Ministro a endereça si mesmo e no envelope pode-se
identificar uma letra de mulher. Nesse
sentido, finalizo com o comentário de Costa:
Esses são os
efeitos que o autor primeiro isola da relação ao significante. A perda de um
referente natural/universal implica uma perda do lado da significação. Deste
modo, o sujeito será produzido numa relação às leis da linguagem, sendo
determinado por elas e, por essa razão, advém daí sua condição de feminização,
dessa submissão a essas leis. (2008, p. 46)
REFERÊNCIAS:
COSTA, Ana.
Conceitos da psicanálise e fundação de um campo. In: Fundamentos da psicanálise – Revista da Associação psicanalítica de
Porto Alegre. - Porto Alegre: APPOA, n° 31, 2006. 9-13 p.
_____________Relações
entre letra e escrita nas produções em psicanálise. In: Estilos da Clínica, 2008, Vol. XIII, no 24, 40-53 p.
LACAN,
Jacques. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1998 a. 496 -533 p.
_______________A
significação do falo. (1958) In: Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998 b. 692 -703 p.
_______________
Lituraterra. In: Outros escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2003. 15 – 25 p.
_______________
O Seminário sobre “A carta roubada”. In: Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998 b. 13-66 p.
_______________ Seminário 18 – De um discurso que não
fosse do semblante (1971). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.